quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Sociologia



                 AVISO A POLÍCIA ESTA CONTA E MEU COMPUTADOR ESTÃO SENDO UTILIZADOS POR BANDIDOS À MINHA REVELIA MEXEM NOS CONTROLES, ALTERAM ARQUIVOS
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  DENUNCIE O FASCISMO BRASILEIRO ATUANDO NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADO COMO RIO DE JANEIRO




           Sociologia

                                           Eliane Colchete


            

         Na década de cinquenta do século XX, a democracia está consolidada como
algo que a teoria social geralmente conceitua ao modo weberiano, como ideal-tipo da racionalidade
burocrático-empresarial das sociedades capitalistas. Mas ao longo dessa década, começam-se a forçar
 os limites sistêmicos e com isso questionar a pureza das instituições democráticas. O que se avança
em sociologia é a impossibilidade ora sentida de se manter separados os questionamentos a propósito das instituições sociais – governamentais e civis – e os imperativos da economia que efetivamente traduzem o comportamento real do mercado e da sociedade.
           Vem daí as inquirições a propósito da “elite do poder” - de modo que desde essa década o que se descobre e tematiza sempre mais acentuadamente é que um Poder agindo na democracia moderno-ocidental, onde não deveria de forma alguma haver isso, sendo esse o regime da representação neutra da heterogeneidade social, por definição não podendo distinguir-se uma ascendência decisória conforme grupos tradicionais, indivíduos privilegiados, castas, ou oligarquias.
            O Poder que H. Gerth e C. Wright Mills tratam por esse viés, é o atuante nas grandes empresas, mas ele não tem um rosto – digamos, o dono da empresa – se ela agora é tanto gigantesca quanto multi-administrada. A “elite do poder” é constituída por esses especialistas anônimos, os altos funcionários das maiores empresas do mundo, que respondem pelas decisões que, vindo delas, afetarão inevitavelmente o conjunto da sociedade. Não se trata, portanto, do que habitualmente se associa ao termo “elite”, como pessoas ou famílias que se destacam por sua celebridade ou pela extensão de sua propriedade.
            O “poder” é agora um conceito sociológico, não um termo polissêmico, mas também correspondendo a algo um tanto oposto ao que Weber havia definido em termos da prerrogativa legal de fazer uso da força, o atribuível ao Estado. O “poder” dessa elite de funcionários implica apenas prerrogativa decisória, desde que isso afete necessariamente um grande número de pessoas – como a decisão de mudar o percurso da via férrea, por exemplo, e desde que esse transporte seja da responsabilidade de certa empresa particular. Assim, nesse exemplo, vemos que não só os usuários estão sendo afetados, mas algo como o destino de uma cidadezinha do interior, por onde a via férrea deixa de transitar ou por onde ela agora percorre, está inteiramente compactado nessa decisão.
             Se relacionarmos um estudo como esse de Gerth e Mills, ao que se menciona sempre mais ostensivamente por meio de listas periodicamente circuladas – a saber, que são um máximo de cem a duzentas as empresas listáveis como responsáveis pelo grosso dos serviços que mantém a vida pública nos EUA, e por extensão no mundo ocidental – compreendemos a importância do tópico.
               O funcionalismo procurou integrar as variáveis de mudança social e poder, sem renunciar ao seu intuito de integrar funções num sistema como totalidade social e fazer dessa tarefa o objetivo único da sociologia. É preciso notar que o funcionalismo, já entre os anos cinquenta e setenta, está razoavelmente estabilizado como uma teoria social de matiz weberiano, com generalizado uso do ideal-típico, especificamente o capitalístico sendo mantido em termos de burocrático-racional-legal.
              Para combinar isso com aquelas variáveis que já se tornaram incontornáveis, há alguns recursos que se tornaram célebres, enquanto como um todo, e para todos os efeitos, o funcionalismo ortodoxo permanecia afirmando estar apto a dispensar-se de tratá-las.
              Robert Merton propôs equacionar a mudança social como uma substituição, ou mudança de papel, de funções. Uma função atuante pode se tornar latente, mantida apenas por razões de tradição, ou funções podem ser agregadas conforme a complexidade social aumenta.
             Quanto ao poder, afetou geralmente a sociologia da burocracia – por exemplo, Robert Michels conceituou a falácia de uma “democracia burocratizada” - pois as organizações, governamentais ou privadas, especialmente os partidos políticos, são agremiações com liderança, onde portanto as decisões competem cada vez menos à totalidade ou consenso dos membros para serem concentradas nos escalões de competência, sempre mais reduzidos à medida que a responsabilidade, função do saber subjacente à competência, aumenta. Mas é essa democracia fantasiada que a sociedade atual apregoa como seu atributo civilizado.
           Michels, então, não denega que a democracia seja o critério que permite definir o que é civilizado e o que não é, numa correlação estrita com a noção de "estágios", de modo que "nos mais inferiores estágios da civilização" domina a tirania. Os tempos modernos não são como no princípio orientados para isso que é a restrição de liberdades e privilégios a poucos. O que ocorre, contudo, é a desconcertante descoberta de efeitos não previstos na evolução social, pois junto com a democracia, a ampliação dessas liberdades a círculos cada vez maiores, sobreveio a tendência oposta, com o aumento do poder dos líderes, paradoxalmente através da burocratização ou racionalização das instituições que deveria por definição ser o meio da evitação do “poder”.
        Vemos assim que por “liderança” Michels conceitua principalmente um efeito de competência técnica ou personalística quando se trata de política. Sendo assim, a decorrência do que ele designa “tendência oligárquica" , a saber, de concentração das decisões nas mãos de poucos, é conceituável como consequência imprevista de uma ação que é em si racional-legal.
           Aqui, a meu ver, temos um estudo que traceja uma trajetória inversa à que Weber designou como convergência de ética protestante e espírito do capitalismo. Usando os conceitos do próprio Weber, teríamos uma liderança carismática ou uma ação religiosa sendo ela mesma fator de precipitação do seu oposto, a liderança legal ou a ação racional. Michels está mostrando como a liderança legal converteu-se, por sua dinâmica interna como ação racional, num tipo de liderança carismática. Não que Weber não tenha pensado esses dois tipos de liderança como podendo constar em organizações elas mesmas racionais e burocráticas – desde que em algum nível puder se tratar de eleição, escolha conforme preferências em vez de simples ocupação do cargo por competência técnica.
            Mas parece que Michels observou uma tendência que não se resolve de modo que se pudesse manter o princípio da racionalidade legal apenas, como constituindo a democracia, desde que no âmbito da própria organização que a integra, esse princípio parece não poder, precisamente, tipificar o que ocorre.
            No funcionalismo a evolução social é um princípio mantido exatamente nessa acepção de Michels – o que se verifica do mesmo modo em Parsons. As noções atuantes são complexidade e racionalidade. Por complexidade trata-se do acúmulo de funções numa totalidade maior possível, como o Ocidente moderno em relação a sociedades então ditas “simples” ou ao passado feudal do ocidente.  Por racionalidade temos a concepção de instituições aptas a manter o bom funcionamento do sistema de funções, com descarte do irracional.
           Pressupondo o vínculo weberiano entre capitalismo e racionalidade-legalidade, a democracia parece ter entrado por via histórica, mas tematizada apenas por instrumentação sistêmica. Isto é, ela foi simplesmente agregada ao ideal-típico weberiano por que factualmente veio a caracterizar a vigência do que este descreve, a sociedade capitalista. Em todo caso, no cenário que antecede os sixties, e mesmo mantendo-se concomitante às suas contestações cerradas aos critérios de sistema e função, a democracia era pensada pelos funcionalistas como um regime de liberdade, aquele em que a racionalidade da empresa poderia vicejar, contra o que tudo o que se apresentava diferentemente era situável como menos avançado, porquanto menos interessante ao bem estar dos seres humanos em sociedade – já examinamos a habitual associação entre sociedades não-ocidentais ou ante-modernas como sociedades tirânicas.
          O senso comum que geralmente atribui essa mentalidade ao Iluminismo, na verdade equivoca-se. Lá não há, como aqui, a concepção situada de razão, de modo que pudesse ser mediada pela burocracia, nem há a centralidade da democracia em teoria política. Esse senso comum político do Ocidente tem veiculação muito tardia, emergindo somente no século XX e devido ao fenômeno de margens estadunidense.
           Esse recurso aplicado por Michels é generalizado: tanto as variáveis de mudança social e poder, uma vez interferindo com o que deveria decorrer em termos de legalidade e estabilidade do todo, desde que tratando-se de racionalidade, quanto tudo o que pudesse ser criticável na realidade social ocidental, tornou-se manejável no funcionalismo como efeito imprevisto de ações legitimamente planejadas com objetivos racionalmente mediados.
            Merton o utiliza, quando se trata da sociologia da burocracia, para mudar o foco do trabalhador nas sociedades capitalistas desenvolvidas. Sujeito de um Ethos, o da racionalidade empresarial, em vez de portador de força de trabalho à Marx, vários efeitos imprevistos podem decorrer dessa situação de pequeno funcionário, o oposto da “elite”. Efeitos que nada tem a ver com uma vontade de super-exploração por parte do patronato – como obsolescência de função na qual, contudo, o funcionário teve que ser unicamente especializado; ou rigidez inadequada na aplicação de normas, à exemplo daquele homem que por estar servindo o exército americano numa função prescrita no exterior, não pode formalizar o visto que o regulamento previa anualmente, de modo que quando retornou aos Estados Unidos descobriu que não podia se aposentar. Mas, o viés dessa teoria não é de confronto ao sistema, e sim de prevenção ou correção dessas consequências imprevistas.
           O funcionalismo evolve bem dentro do espírito do neocapitalismo norte-americano, não obstante tornar-se sempre mais claro que a aplicação de recursos para contornar as discrepâncias nem sempre podem resultar como medida renormalizadora.
             Assim, Michels já destoa um pouco de Parsons. Enquanto este fala só de evolução social, como algo sistemicamente definível, o artigo de Michels (A tendência burocrática dos partidos políticos) acentua que a evolução, como trajetória das sociedades no rumo da democracia, não ostenta uma trajetória linear, mas se inflete, como uma tendência invertida, quando a constante oligárquica se estabiliza no interior mesmo da administração civil ou das instituições de representação.
           Se desde Wright Mills temos o Poder atuando pelo lado da empresa, agora trata-se do Poder pelo lado das instituições políticas elas mesmas – de modo que o recurso da explicação, pelo viés do imprevisível, não elide para efeitos críticos a realidade do comprometimento do sistema, o que um termo como “falácia” apreende. A meu ver, um estudo como o de Michels está pragmaticamente mais semelhante a Mills do que a Parsons, de modo que a ruptura se propaga desde a aplicação das próprias premissas funcionalistas, como dos conceitos weberianos que implicam a centralidade da sociologia da burocracia na apreensão do relevante à sociedade moderna-ocidental.
          O ponto é que a burocracia pode extrapolar aquele princípio pelo qual ela é a forma da produtividade por excelência, ou seja, a elevação ao patamar do tratamento científico ou técnico daquele mesmo princípio que usamos na rotina, e pelo que procuramos fazer as coisas do modo mais econômico, simples e funcional possível. Trata-se, nesse ponto, não só do funcionalismo em geral, mas daquilo em que ele se ancora, a teoria weberiana da burocracia, correlato do ideal-tipo da ação na sociedade capitalista.
             Prestes Motta (O que é burocracia), não deixou de notar essa centralidade da teoria de Weber, mas supôs que neste não há propriamente definição de burocracia, e sim somente suas características e uma série de considerações tecidas a propósito. Contudo, no artigo “Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo ideal”, Weber escreveu que “o tipo burocrático mais puro” é “formalmente, o mais racional e conhecido meio de exercer dominação sobre seres humanos”.    
 Aceitando-se isso como uma definição, ela decorre de que “numa perspectiva puramente técnica” esse tipo burocrático mais puro de organização é aquele capaz de “atingir o mais alto grau de eficiência” administrativa. Weber também registrou que “administração burocrática significa, fundamentalmente, o exercício da dominação baseada no saber” - o que ensejou a drástica redução de Henderson e Parsons, pelo que “na esfera da administração a escolha é apenas entre o diletantismo e a burocracia”, uma vez que “o fundamento” daquilo que seria a burocracia “reside no papel do conhecimento técnico”.
           No artigo de Weber, “administração burocrática” e “burocracia” são termos usados indistintamente, como sinônimos, e A. Gouldner aceitou também como sinônimo de burocracia o que lá Weber designa “autoridade legal” caracterizando-a em cinco “ideias interdependentes” e oito “fundamentos.” É principalmente a relação dessa autoridade com o tipo de norma e obrigações a ela associadas e dela derivadas, aquilo de que se trata nessas listagens. O interesse de Gouldner foi apontar os “Conflitos na teoria de Weber”, conforme o título do seu artigo.
           Para a burocracia, Motta destacou seis características em Weber , quando Weber libera dez critérios para a nomeação de funcionários num quadro administrativo burocrático, e mais nove características do que é essencial a organizações burocráticas. O especificado são itens como critérios de cargos e salários, disciplina e controle organizacionais, e quais organizações podem ser exemplificadas como burocráticas – tais como empresas, governos, igrejas e exércitos.
            Richard Hall elaborou um esquema de “características da burocracia enumeradas pelos principais autores”, onde cada tópico é tratado em termos de “dimensão” que podemos mensurar de forma autônoma, por exemplo, por meio de questionários a propósito dos itens que especificam cada uma delas circulados entre os funcionários de uma organização. As dez características são observadas apenas por Weber, Hall havia acrescentado mais uma à lista, somando onze, mas o maior número no quadro fica no critério de Weber; Heady, Udy, Berger, Parsons, Dimock e Michels utilizam quatro; Carl Friedrich, cinco; e Merton, sete.
          Nesse artigo, o próprio Hall elege seis características para ilustrar o seu método da mensuração das dimensões, as quais se aproximam das exemplificadas em Motta, mas com ênfases um tanto divergentes – a mensuração serve para mostrar o quanto uma organização está burocratizada.
         Aproximando as seis características de Hall daquelas em igual número, de Motta, temos o seguinte resultado. O primeiro item de Motta focaliza haver um regulamento administrativo, enquanto Hall destaca a divisão do trabalho conforme especialização; os dois concordam quanto ao segundo tópico, a existência de hierarquia de autoridade bem definida; para o terceiro, ambos relacionam a existência de normas oficializadas, com documentação escrita, quanto a direitos e deveres dos funcionários, mas Motta acentua o seu aspecto estritamente funcional, na medida em que só valem para atividades que não tenham a ver com o aspecto privado da vida dos funcionários; o quarto item é igual para ambos, tratando dos procedimentos que implicam a atuação do cargo, ou como na expressão de Motta, da existência de um “treinamento especializado e completo”.
              O item cinco é aquele em que mais contrastam, com Motta listando a especificidade do desempenho administrativo, relativo a um cargo autônomo que não pode se confundir com outras atividades e tendo regulamento próprio, enquanto Hall relaciona apenas a “impessoalidade das relações interpessoais”. Quanto ao sexto item, Motta é um tanto ambíguo, discriminando “o conhecimento técnico, por parte dos burocratas, das próprias regras que determinam o desempenho do cargo”, pois quanto a burocratas, não se sabe como delimitar o alcance, se limitado ao escalão que reflete a ordem da organização como a sua elite, ou o funcionário em geral. Hall destaca para esse item “promoção e seleção segundo a competência técnica”, de modo que se optamos por interpretar o sexto item de Motta em termos dos funcionários em geral, parece tratar-se do mesmo aspecto salientado por ambos.
             Sendo aqui demasiado inserir todas as características tratadas por Hall na multiplicidade teórica por ele descrita, Motta não deixa de evocar esse aspecto, ao inserir junto a essas seis características que dá como de Weber, as atribuídas por Lobrot, em número de quatro. A importância desse estudo de Lobrot será salientada mais à frente.
              Não obstante, Motta destaca o aspecto polissêmico que não se conseguiu elidir do termo “burocracia”, e sobretudo exemplifica bastante bem a problemática sociológica a propósito do ethos burocrático especialmente relacionado à crítica social – como o exame da sociedade organizacional, de Robert Presthus, em que o destaque é para o tema da personalidade organizacional também estudado por William Whyte, sendo esse o tema de que deriva o ethos do funcionário em Robert Merton.
            Motta critica a ideia de que o problema, quanto a isso, se resume no fato da racionalidade organizacional tender a sobrepor-se à liberdade dos indivíduos, seja por que eles se adaptam funcionalmente a elas, seja por que não lhes resta opção e isso se torna, ainda mais, conflitivo com suas personalidades próprias. A seu ver, é só ilusoriamente que a organização é um espaço de relações interpessoais rigorosamente racionalizadas, ou não-ambíguas, e esse seria o dado inevitavelmente conflitivo da sociedade organizacional do ponto de vista dos agentes que a integram.
            Eles precisam crer nessa racionalidade, como em algo ilusório, convertendo-se em sujeitos alienados, ou então posicionar-se como antagonistas a um sistema pervasivo de trabalho e sobrevivência. Nessa linha de argumentação ele está próximo do que vimos em Gouldner, que também se propõe sublinhar o que ficou de incipiente ou obscuro no texto weberiano. O ponto para ambos é que a unidade de método que resume a possibilidade da burocracia ali onde ela se aplica, é algo ilusório, refletindo apenas a concepção ou os interesses de alguns, contra o que seriam os de outros.
           Em todo caso, essa viragem no âmbito do funcionalismo, representada por obras como as de Michels e Mills, poderia não implicar uma ruptura epistêmica real no pensamento sociológico, à exemplo de Merton e Talcott Parsons. Um intuito de conservar a metodologia pode estar subjacente, como quando Gouldner sugere, quanto aos “pontos obscuros” do trabalho de Weber, que “se esclarecidos, possibilitariam uma melhor utilização”. Isso, se fatores não endógenos não viessem à cena. Ou seja, se o que se mostra relevante quando o foco do exame transita do berço da sociologia – as sociedades ocidentais, incluindo os EUA – às de margens já agora “periféricas”, se mantivesse coerente com o que tal limitação de foco permitiu resultar.
             Uma posição como a de Motta já implica uma crítica ao sistema, uma vez que burocrático, um intuito efetivo da “superação histórica da sociedade altamente burocratizada”, mantendo, contudo, que isso não pode estar dissociado da “superação das bases materiais e institucionais” da qual ela depende – como da extensão funcional do político, econômico e cultural que é o mais essencial ao todo da sociedade atual como um sistema burocrático-integrado, uma vez que uma de suas articulações básicas está na eliminação dos “elementos dissidentes do corpo social”.
            Mas, o mesmo impasse, do ponto de vista epistêmico, é o que, a meu ver, está transitando na sociologia de inspiração marxista, quando se trata de aplicá-la às lutas de emancipação neocolonial. Francisco Marsal, no volume Sociologia da coleção Salvat,  salientou bastante bem o papel da “sociologia do terceiro mundo” na superação da centralidade do funcionalismo norte-americano em sociologia.
           Creio que o marxismo, desse ponto de vista, não é epistemologicamente diverso do funcionalismo – o modo de produção sendo uma totalidade, não podendo haver compreensão social fora da totalidade como da causalidade estrutural assim implicada. Ora, quando as lutas de emancipação transitam na margem, mas já tendo que equacionar a sério a questão democrática, vemos que o marxismo mesmo o implica, se ele institui incontornavelmente a etapa burguesa na consolidação da produção liberada dos obstáculos feudais. Somente temos que Marx, no século XIX, não tinha como nem por que associar inequivocamente burguesia e democracia, nem problematizar a esta quando se tratou de pensar a relação entre regime político e proletariado no sentido lato de “povo”.
            Sendo assim, o que o pensamento social da revolução anti-neocolonialista e nacionalista nas margens encontra é esse complexo de fatores que nenhum outro movimento de libertação antes teria que confrontar: a relação de burguesia e democracia quando se trata do desenvolvimento econômico; o saneamento burocrático quando se trata de associar o planejamento para o desenvolvimento com a luta contra as oligarquias; o comprometimento da burocracia e da democracia pelo incontornável do Poder tecnocrático. Se esses dois últimos itens estão formalmente numa contradição quanto à oligarquia, que um elide e outro mostra incontornável, o problema real é que nas margens essas categorias podem não ser aplicáveis sequer como numa trajetória que ou se cuidaria de evitar o adverso, ou pelo menos, iria por si mesma abranger um período de sua curva ascendente.
         Ou seja, se o que as margens encontram quando se trata da teoria social, é já o seu problema, em vez do simplesmente aplicável de suas categorias, até mesmo esse problema podendo não ser o que enuncia a complexidade real da situação de margens – se, como um ítem a mais, temos a internacionalização da economia, o Centro tornando-se auto-estatuído na sua oposição à periferia.
         Não creio que se deva julgar as teorias, sem consideração para com aquilo de que são teorias. Assim, o funcionalismo é a problematização válida de um real dado a ver. O que se contrapõe desde os sixties, o cenário da descolonização política afro-asiática e das lutas por emancipação econômica americano-latina, mais os novos rumos da antropologia social, é um outro real, aquilo que não se podia ver anteriormente, ou pelo menos não de um modo que fosse incontornável a qualquer visar.
        A posição de Franz Fannon é então extremamente interessante, tanto do ponto de vista político, quanto epistemológico, pois ele está se encarregando, um tanto pioneiramente, dos dois focos problemáticos que são agora o todo paradoxal da “teoria social”: o comprometimento “técnico” da evolução social no Centro, e a irredutibilidade da situação de margem. O enfrentamento do Poder, contudo, é o que me parece estar como transversal a ambos os focos, pois seria enunciável a irredutibilidade da situação de margens a partir do comprometimento da burguesia não apenas com a liderança funcional, nos âmbitos civil e empresarial; mas com a constante do desvio que ele designaria do “subdesenvolvimento” e que nós já podemos designar mais adequadamente da “assimetria internacional do capital”, a ação do centro sobre a margem como constitutiva do capitalismo.


             Marsal organizou um quadro destacando as antinomias entre o que teriam sido “os objetivos do período de recepção” da sociologia como ciência empírica, e aqueles que se tornaram os aceitos pela “sociologia crítica dos países periféricos”.
            O quadro ostenta, do lado da sociologia tradicional, os seguintes atributos: “secularização e modernização”; “neutralidade valorativa”; “legitimação pela experimentação”; “comparabilidade”; “objetividade”; “internacionalismo”; “métodos científicos”; “praxis”; “sociologia central”.
            Face a cada um desses itens, temos a sociologia do terceiro mundo, com atributos , respectivamente opostos aos anteriores: “exploração”; “compromisso”; “legitimação pela práxis”; “especificidade histórica”;” subjetividade”; “compromisso nacional”; “mudança científica”; “verificação”; “sociologia periférica”.
           Vemos que as antinomias não são apenas de métodos ou abordagens, mas envolvem também interpretações, como no exemplo da oposição entre “secularização e modernização” face a “exploração”. Obviamente não se está preconizando trocar uma coisa por outra, mas salientando que lá onde o discurso ocidental fala de modernização e de substituição de ideologias religiosas por racionalidade científica, na verdade é a exploração que está compactada quando se trata da penetração do capitalismo nas margens. Marsal está assim levantando as  tendências da conceituação de fenômenos que se depreendem da massa de estudos em sociologia,  nos dois focos produtivos, no Centro e nas Margens, como que decorrendo naturalmente das intenções contrastantes que os impulsionam.
             Na atualidade, quando a geopolítica Centro-Margens já está consolidada em termos da realidade vigente, temos a situação curiosa pela qual o Centro desdobra do que eram seus objetivos iniciais, num discurso de novidade total, algo que seria do estatuto de uma transição de “eras”, como na retórica de Kohn – pelo que estamos na pioneira era planetária, pós-nacional.
            Mas que se trata de um desdobramento, vemos por isso que trata-se precisamente de manter o status de uma “sociologia central”, quando aquilo que esteve motivando o surgimento de sociologias especificamente adequadas ao seu foco produtivo, não foi elidido por esse meio, mas inversamente, só tem se intensificado uma vez que a mola do descentramento industrial – a toyotização, a produção mundializada de peças que só ulteriormente se juntam, etc. - tem por mola o controle das condições de produção nos países periféricos: redução drástica do preço dessa mão de obra periférica em relação à central, isenção ou facilitação de impostos, nulidade do retorno de proveitos sócio-localmente aplicados, além da manutenção do controle das fontes energéticas e fornecimento de matérias-primas, havendo ainda a drenagem direta de recursos através do mecanismo histórico da exportação de capitais (“dívida externa”).
            Assim, creio que na atualidade já há elementos suficientes para notar que o que ocorreu não foi a unificação das condições sociais no planeta, mas sim que a oposição centro-periferia, camuflada como costuma ser pela espacialização em Norte-Sul, na verdade especifica duas linguagens perfeitamente antagônicas. Como no romantismo tratava-se da língua, argumentando-se que se a produção cultural de margens, como a literatura, era veiculada na língua do europeu, então as independências eram apenas decorrência da mundialização da cultura europeia, mas o que se respondia a isso era que a linguagem cultural da margem funcionava de modo irredutível ao europeu, agora trata-se da linguagem da produção.
          Obviamente, não é por que um mesmo aparelhamento industrial se verifica nos Estados Unidos e na Índia, que trata-se da mesma linguagem tecnológica transitando no mundo inteiro – uma vez que a reserva do Saber opera a capitalização da evolução tecnológica nos EUA, não na Índia que com isso só se torna mais dependente das transnacionais.
           Aqui trata-se de propor que a conceituação da irredutibilidade de linguagens culturais pode ser tratada pela leitura da oposição centro-periferia em termos da oposição de Centro e Ex-cêntrico – correspondendo a mais do que métodos, a leituras do real. No Centro trata-se de unificar em torno de um referencial único, todos os fenômenos que então seriam decorrências dele; temos Ex-cêntrico quando se trata, inversamente, de autonomizar todos os constituintes do que se desconstrói como pseudo-unidade para mostrar como multiplicidade. No Centro o saber é suposto de aplicação universal; o Ex-cêntrico estipula o saber como adequado somente ao que se expressa por meio dele, enquanto uma linguagem inseparável da produção do seu “objeto”, porquanto é essa linguagem que implica a relação do objeto ao sujeito – podendo não ser contra-positiva como no cientificismo, já que justamente essa linguagem não é universal, mas “escritura”, gramática ou programa somente intrínseco ao seu funcionamento, mas pressupondo que a irredutibilidade dos gêneros é incontornável a esse nível mesmo de programa.
         No entanto, nesse caminho do ex-cêntrico o obstáculo maior é a tendência à implicatura – pois a multiplicidade tende a ser reduzida como “articulação”, mas isso só conduz a um recentramento; sendo impossível fornecer uma linguagem única de todas as multiplicidades, e em vez disso, sendo necessário pensar uma multiplicidade como aquilo que implica a sua própria linguagem que então é o que se precisa reconstituir. Nesse salto da articulação à pluralidade de linguagens é que me parece estar instalado o que há de irredutível entre o pós-estruturalismo e o pós-modernismo sendo este um cenário pós-histórico – onde não há possibilidade de alguma história geral - que na verdade era reducionismo sistêmico, com toda a história sendo suposta redutível à  história ocidental - mas as histórias localizadas precisam ainda formular a linguagem em que podem ser reconstituídas já que foram desfiguradas, descaracterizadas, recalcadas como meros capítulos da história geral da colonização e do imperialismo, ou seja, tratadas como se não possuíssem história autônoma.
          Não que essa pluralidade estivesse intematizada no primeiro, mas lá ela nunca foi pensada como algo mais importante que a articulação – com exceção, talvez, de Jacques Derrida. É interressante sublinhar que essa extensão pós-moderna da história retoma o historicismo romântico como algo que havia sito interceptado e contrafactado pela sistematização sociológica desde o positivismo e ao longo do funcionalismo.
           Desde o contexto da descolonização afro-asiática, até a consolidação da sociologia do terceiro mundo, vemos que é da linguagem teórica que se trata, quando se apreende a necessidade de conceituar essa irredutibilidade de funcionamentos para processos que aparentemente seriam o mesmo.
           Fannon torna-se exemplar sob muitos aspectos, e já assinalei que ele começa por um exame das categorias da sociologia central na aplicação à sociedade local. Mas é de se ressaltar que ao transitar o fenômeno cultural para o desejo, em vez de produção de saber – como quando ele refaz a Cena da segregação do negro pelo menino branco, algo que envolve não conceitos, nem especificamente a aplicação da sanção legal, mas o sentimento real desse menino – ele pode estar focalizando algo de abrangência muito maior que o contexto racial-apartheidista, se obviamente a situação descrita por Fannon não envolve nenhuma agressividade real ou potencial por parte desse homem negro, pois do contrário tudo seria muito racionalmente explicável.
          Quando Bhabha usa esse texto para postular que algum obstáculo à plena maturação do inconsciente lacaniano deve estar derivando do próprio funcionamento da sociedade apartheidista, e então define esse obstáculo em termos do aparato discursivo foucaultiano que ele então trata de diagramatizar para reconstituir o colonial como intrinsecamente espaço da segregação, parece-me que ele abstraiu o fato de que a segregação é um deslocamento ao contexto da colonização de um fenômeno de plena vigência nas sociedades europeias.
            Se para cada contexto segregacionista temos que projetar um aparato constitutivo que responde então pelo Poder localmente agente, a questão é que isso não implica haver um inconsciente universal de que essas coisas são sintomas degenerativos, uma vez que podemos, sim, unificar o funcionamento dessa segregação, culturalmente, como algo que funciona no plano de expressão, em termos do que se origina no inconsciente geopolítico que pôde ter vindo a ser o da dominação ocidental. Pois, inversamente, seria preciso mostrar em que o mesmo inconsciente saudável seria inviável ao empreendimento dessa dominação geopolítica – o que me parece impossível.
            Lacan certamente não intentou justificar a agressividade ou o segregacionismo pela natureza do inconsciente, mas a linearidade do signo – o binário sim/não, presença/ausência – sempre corresponde ao modo pelo qual Freud colocou a questão da interiorização da lei. Para Lacan, o ajuste socialmente igualitário da sociedade moderna-ocidental  é uma decorrência de que todos são escravos da mesma lei. Assim, o fato de que a natureza do inconsciente é incoativa a ela não implica que não resulte nela a única possibilidade do saudável no inconsciente enquanto o que se deriva dele como consciência.
           Nisso é que compreendemos o papel do retorno a Nietzsche quando se tratou de pós-estruturalismo e pós-modernismo, isto é, quando se tratou de des-universalizar o inconsciente a partir da desmontagem do que seria a centralidade de um funcionamento binário do signo com a decorrência de certas relações dadas como lógicas, universalmente racionais, posto que essa complementaridade de inconsciente e consciente não se mostra suficiente para garantir a vocação da consciência à lei para todos os casos.
          Freud colocou essa questão em termos formalmente universais do ponto de vista do pensamento social – todas as sociedades apresentam alguma coerção legal do comportamento dos seus membros, por mais bizarra que seja, e por isso o inconsciente deve ser uma função da regulação do desejo individual como algo que investe essa coerção como interesse seu, como identidade sua. Mas Nietzsche conceituou a oposição entre sociedades cuja coerção legal implica a segregação de grupos, e sociedades em que não há segregação de castas em sentido lato.
          Não se trata da oposição de estatal/não-estatal, muito menos de sociedades com ou sem estratificação, mas sim de tipos de estratificação – aqui não reproduzo a interpretação do Anti-Édipo a propósito de Nietzsche, sendo que o estudo deleuziano anterior me parece mais consequente com as ideias deste. O estudo de Foucault sobre a “história concreta” – que seria o método nietzscheano em história – é a meu ver o mais pertinente.
          Se a variação é inúmera quanto aos símbolos e quanto à história, conforme Nietzsche há essa constante: a sociedade implica segregação de grupos, castas no seu interior, somente se algum desses grupos é dado como centro em termos de consciência. O Poder de segregar (dominação) existe, na terminologia de Nietzsche, como poder de alguns para controlar a consciência de outros, de limitar em que consiste o saber, isto é, primariamente o saber ontológico, seja acerca dos deuses, da Revelação, do Logos ou do objeto científico mas idealizado como verdade em si, não apenas relativo ao seu campo metodológico, o que seria, inversamente, a auto-limitação da ciência quanto ao Poder.  
       Não há essa dominação quando não obstante o comportamento ser socialmente regulado, o plano de expressão é livre pelo modo mesmo da legalidade social – ou do gênero de escritura em que ele se produz, poderíamos acrescentar, à Barthes e Derrida. Aqui vemos que Freud e Nietzsche são de fato antagônicos, mas posto que há uma leitura da sociedade de que depende, efetivamente, para ambos, a sua leitura da subjetividade. Essa leitura da sociedade é que diverge neles, para o primeiro sendo generalizável, em Nietzsche devendo haver dois conceitos de sociedades irredutíveis.
        O controle sobre os corpos parece compactado nessa constante fundamental de Nietzsche a propósito das sociedades de tipo sacerdotal ou de controle da consciência, pois o saber da consciência é ao mesmo tempo do dever de todo comportamento dos corpos. Já quando Nietzsche fala do Estado em termos dessa interiorização da consciência, trata-se estritamente de referenciar o conceito de Hegel que define o Estado como tal governo da consciência num parâmetro evolutivo social – por aí, em Nietzsche, a Roma antiga não tipifica essa interiorização da consciência, mas é obviamente sociedade estatal.
          É de se notar, também, que a oposição das duas estratificações compacta, como já observei, variações simbólicas consideráveis entre sociedades, de modo que o ponto em que a oposição incide o conceito nietzscheano não é o da existência da lei, mas somente o controle da consciência. Assim, se a Roma antiga não é bem o que se entende por um matriarcado à Oswald de Andrade, o ponto de incidência do pensamento nietzschiano é aquele pelo que a oposição de Roma aos cristãos não seria classificável sociologicamente como a mesma que os cristãos medievais movem aos hereges. Lá trata-se de uma insubordinação ao poder do imperador – não há inquirição a propósito das opiniões sustentadas pelas seitas, o que é especificamente o que interessa ao sacerdote católico.
         Há entre as duas estratificações uma irredutibilidade em termos do desejo, em termos de inconsciente, e é isso o que importa ao conceito na medida em que é o que implica a impossibilidade da sociedade moderno-ocidental cientificista (não apenas científica) ser dada como contexto da liberdade social para Nietzsche, se o que a move é um desejo da consciência, um desejo de interiorização sempre mais efetivada, da lei – inconsciente da dominação identitária, cujo sintoma conspícuo é a filosofia de Hegel, na apreensão de Nietzsche.
            Aqui não tratarei da releitura da filosofia de Hegel e do Romantismo em geral sobremodo importante ao pós-modernismo, referencio apenas estudos feitos alhures (blog "romantismo", work in progress), de modo que é preciso estar ciente dessa limitação do pensamento nietzschiano, mas isso não interfere com o propósito sociológico do seu estudo, ao menos nesse nível.
         A meu ver, conforme a teoria social de Nietzsche, o que se segrega é o que ameaça como o que escapa ao controle por si mesmo, não em relação a nós ou a uma lei já instituída; o que surge como não subsumível à igualdade desse controle – que não se pensa, portanto, sinônimo de igualdade como condição democrática. O que está sob o controle surge como status regulado pela consciência prescrita saber do referencial social uno, isto é, central. O que escapa ao controle então é automaticamente suposto fora de todo saber, monstruoso incontrolável por sua própria natureza. Aquilo que vimos evoluir tardiamente na sociologia da burocracia, está prefigurado por Nietzsche como o cerne mesmo da sociedade industrial que ele viu se consolidar historicamente. Mas nessa crítica o que Nietzsche estabeleceu foi que a novidade (modernidade) dessa sociedade era o ilusório ou uma enunciação cuja pretensão esbarrava com um a priori histórico seu constitutivo, ainda que mantido inconsciente.
              Por aí, ainda que na Roma antiga obviamente existissem classes bem distintas por uma hierarquia de poder político que não é o que quereríamos reproduzir, vemos que lá um escravo podia desempenhar altas funções junto a um homem importante: não é por que o escravo é outro em relação à hierarquia ou à etnia, que ele é naturalmente outro, como se fosse um demônio, um ser destinado à condenação, ou inferior, por sua natureza mesma, etc., como é o outro da sociedade cristã.
             A irredutibilidade das formulações de Nietzsche e Freud acerca da questão da interiorização da lei é manifesta. Para Freud, onde não há interiorização da lei nesse sentido da consciência, trata-se de um estágio anterior a ela – narcisismo infantil sendo estruturalmente o mesmo que primitivismo antropológico. Resta que a interiorização é o que concede domínio à consciência pelo modo mesmo de ser do inconsciente, contra-posto à civilidade por isso tendo que encontrar seu limite para que o sujeito possa sobreviver, esse limite então sendo a identidade que é socialmente destinada pela condição comum em que todos estão, a saber, esse mesmo antagonismo entre seu ser individual e sua inserção social.
            Conforme Nietzsche, a interiorização da lei nesse sentido sacerdotal de uma formação da consciência vigilante punitiva da outra consciência, não é o único modo pelo qual há legalidade social, não havendo nada que conduza de um a outro modo de estratificação, senão o que já vimos com Oswald de Andrade, isto é, a possibilidade reativa do desejo, dele decorrer como enfraquecimento das forças que em vez de quererem atuar, tendem a um limite da atuação. O que Freud supôs como explicação, para Nietzsche era o que precisava ser explicado, a saber, a consciência definida como a moralidade repressiva do desejo.
            Entre ambos, contudo, o que permanece em comum é o seguinte. Eles já não supõem a identificação automática de sujeito humano e intelecto, mas por sujeito temos vontade, desejo, inconsciente de forças agentes que então é preciso explicar como é que se estabiliza como sujeito histórico – responsável por seus atos, socialmente integrado, etc. Ou seja, é já esse sujeito enquanto histórico, agente de seus acontecimentos pessoais, que se pensa. Isso, em vez do clássico alma, razão, forma, em todo caso somente exemplar de espécie, indivíduo de um conjunto, sendo somente o conjunto o definível e pensável.
           Além disso, eles também não supõem mais, como os positivistas, que na origem há sociedades totalmente sem lei, de que por evolução vão decorrer as sociedades reguladas por instituições. A problemática da interiorização da lei surge assim somente pela altura da vigência do simbolismo, contaminando desde aí a literatura, por exemplo, na prosa de Kafka. Ela está muito presente no contexto do funcionalismo, portanto, mas por essa via tendeu à generalização ao modo de Freud – a oposição entre sociedades tradicionais e modernas não repôs nesse parâmetro a des-universalização de Nietzsche, mas ora a premissa de evolução social que já reportamos, ora a crítica da sociedade industrial como desumana por que mecanizada ou impessoalizada, o que de Nietzsche à crítica recente, tem sido visto como falácia ou ilusão, independente do problema de se isso seria desejável ou não.
           O questionamento da universalidade científica além do parâmetro de sua linguagem imanente, a crítica  sociológica do cientificismo, é o que emerge nos sixties e como estamos notando, esse é o principal aspecto pelo qual se pode afirmar que a ruptura dessa época é algo bem mais relevante do que apenas o efeito transitório de circunstâncias passageiras – sendo essa ruptura intrinsecamente relacionada à produção cultural de margens e à evidenciação da sua irredutibilidade, não subsumível à dicotomia sócio-evolucionista de selvagem e civilizado.

           2 -
    
          Fannon desenvolve a questão sociológica da classe social. Isso que se deveria chamar burguesia devido à necessidade de se manter o quadro da referência conceitual marxista quando se trata de revolução social, mas que está na contingência do país subdesenvolvido. Ora, também o pivô revolucionário nesse contexto é o nacionalismo, não imediatamente o problema da divisão do trabalho.
         Fannon se preocupa com o circunstancial dessa posição. Se tudo correr bem, se a Independência vier, o que mais se poderá esperar senão uma burguesia nacional que deverá “se contentar, sem complexos e com toda dignidade, com o papel de agentes de negócios da burguesia ocidental”, uma vez que a palavra de ordem dos partidos nacionalistas era apenas independência, “e, quanto ao mais, deixam para o futuro”?
         O interessante nesse texto é que a solução de Fannon – a burguesia das margens teria que se negar como burguesia, teria que fazer-se inteiramente povo – aparece compactada na mais sincera assunção das premissas dialéticas. Com as mesmas suposições de Werneck Sodré, Franz Fannon chega a uma perspectiva inversa, o que sinaliza para a diferença de situação dos países desses dois analistas. 
         Para Sodré, seria preciso ter-se feito a revolução burguesa antes de poder se desencadear a luta autêntica pela revolução proletária, não havendo irredutibilidade dos processos industriais de margem e ocidental. Assim, sua leitura do golpe dos sixties na América Latina e especialmente no Brasil foi de um aborto da revolução burguesa que já estava se procedendo. Mas ele não chega às consequências dessa anormalidade - não muda a concepção de capitalismo, uma vez tornando-se claro que a impossibilidade da revolução burguesa na margem deriva dos imperativos da revolução burguesa já feita no Centro. Supõe, inversamente, que o golpe pode ser atribuído a causas internas, a saber, o interesse do latifúndio, tese formalmente contraditada por René Dreyfuss cujo argumento é apoiado pelo estudo do intervencinismo ilegal norte-americano nos países do terceiro mundo, como em Claude Julien.
           Para Fannon, o caminho revolucionário das lutas de independência tem que ser “contra a burguesia dos países subdesenvolvidos”. Mas o modo tão genuíno de sua expressão se torna, por outro lado, inequívoco da ambiguidade de sua base teórica, já que a rigor, como no parágrafo imediatamente anterior, ele escreve, “nos países subdesenvolvidos, vimos que não existe verdadeira burguesia, mas uma espécie de pequena casta ávida e voraz, dominada pelo espírito miúdo e que se satisfaz com os dividendos que a antiga potência colonial lhe assegura”.
          As oportunidades dessa pseudo-burguesia nacional periférica são portanto, após a independência, de dois tipos, a seu ver. Ora mantendo o elogio do artesanal e do artigo nacional, mas produzindo para exportar do mesmo modo que fazia antes, vendendo o barato e comprando o caro; ora participar de uma indústria local inteiramente à serviço do capital internacional, na expressão de Fannon, a instalação de “fábricas de montagem”.
            À época desse escrito, não havia ainda a possibilidade da globalização como se verifica na Índia, onde um complexo industrial local se instala, não como as montadoras do formato brasileiro, não obstante a reserva de Saber continuar de fato detida pelo Centro e mesmo que o complexo mantenha um setor de pesquisa - sobre isso há um artigo interessante de Marcos Costa Lima, As tecnologias da informação e da comunicação e o desenvolvimento: modelos brasileiro e indiano. Leitura que deve ser complementada pela observação de que a globalização no sudeste asiático significa a oferta de centavos de dólares a um dólar por hora de trabalho, pela mesma empresa que na Europa oferece aos seus operários vinte dólares por hora de trabalho, como se registra no estudo de Dreyfuss sobre o assunto "globalização".
       Em todo caso, na concepção de Fannon, a  nacionalização, para essa casta, significa transferência aos autóctones das concessões herdadas do período colonial. Nesse sentido, seu estudo integra o complexo temático do subdesenvolvimento e da polêmica a propósito da burguesia no sociologia do terceiro mundo, seu interesse permanecendo ainda atual.
        Na teoria da pseudo-burguesia de Fannon, formando-se após as lutas pela independência ela se põe no lugar do antigo colonizador como alocador dos recursos, para isso entrando num novo entendimento com ele, mantendo o resto da população no mesmo estado de não participação da nacionalidade enquanto cidadania política efetiva. Mas ele também coloca, como personagem dessa transição da indepedência política à dependência econômica, o heroi da luta pela libertaçao nacional que se torna depois cooptado pelo antigo colonizador cuja identidade transitou do governo europeu ao empresariado internacional,  tornando-se lider demagógico-populista da recaptura do território pelo capital.
         Assim, se “em verdade, a etapa burguesa na história dos países subdesenvolvidos é uma etapa inútil”, somente “quando essa casta for abolida”, é que “se perceberá que nada ocorreu desde a independência, que é preciso tudo retomar, que é preciso partir do zero”, na proposição de Fannon.
        Essa é uma afirmação de importância considerável, como podemos notar pelo fato de que enquanto nação consolidada constitucionalmente, não há até aí modelos que não sejam previamente racionalizados a partir do Ocidente – a menos que voltemos o olhar à experiência de Solano Lopes, no Paraguai. Notamos, também, como a divergência das posições de Fannon e Sodré quanto ao papel da burguesia nas economias de margens, pode ser interpretada pelo equacionamento em Fannon, da problemática recente a propósito da teoria social ocidental que já não mantinha àquela altura uma imagem do capitalismo que podia fazer convergir Weber e Marx quanto ao significado racionalizante da burguesia.
            Vemos que a alternativa de Fannon quanto à economia periférica desde que alinhada à central, é a mesma que se pode enunciar entre a autonomia – nos planos cultural e econômico – e o alinhamento. O artista modernista na margem está numa sobredeterminação desse dilema, pois a autonomia ainda deve ser algo a optar entre o que ele faz ou o que ele é. No entanto, como se trata para o revolucionário nacionalista de criar uma realidade social que antes não existia, essa sobredeterminação atinge uma urgência imprevista no cenário da descolonização africana.
             Aquele impasse no interior da sociologia da burocracia obtém um relevo inesperado nesse quadro, se lembrarmos do cenário republicano brasileiro, onde, desde a sua implantação, o que estava em litígio era justamente lograr transformar o perfil da autoridade, desde a oligarquia rural-regional-agrário-exportadora, geralmente monocultora, a uma burocracia gerencial capaz de agenciar centralmente os múltiplos aspectos da economia no interesse da nação como um todo e dos estados particularizados conforme suas potencialidades inerentes.

          É interessante notar que a oligarquia - aqui estritamente no sentido dessas castas agrário-exportadoras latifundiárias americano-latinas geradas numa estrutura de dependência internacional, não no sentido de um pessoal especializado que com isso obtém poder decisório - ela mesma já foi tratada como um tipo de burocracia, assim como o próprio mercado colonial português. Essa é a abordagem de Wamireh Chacon (Estado e povo no Brasil), pelo que ele aceita as versões de historiadores lusos, de que Portugal nunca teria sido um país feudal, se jamais descartado o absolutismo real, e por aí seria um tipo de burocracia derivada da administração palaciana o resultado da organização da exploração metropolitana. O que Weber definiria em termos de burocracia não-racional -legal, mas patrimonial.
       Conforme a terminologia de Weber,  na burocracia racional-legal, vigora a livre-empresa e o Estado existe para manter as leis que permitem sua exerceíciio, o sujeito da lei é o particular, todos são iguais perante a eli do Estado que é, portanto, impessoal.  Na burocracia patrimonial, que precede historicamente a racional-legal, inversamente, há uma representação carismática, fortemente pessoalizada que concentra o poder de fornecer licença a qualquer iniciativa econômica particular agente no território, como o rei, o vizir, etc.
           Normalmente procede-se como se Weber houvesse oposto a ambas a formação feudal onde as relações de autoridade não seriam centradas num soberano comum. A meu ver, porém, na verdade Weber pensou essas relações feudais em termos da burocracia patrimonial, só que colocando no lugar de um déspota cuja autoridade cobre o conjunto de atribuições menores - dentre as quais os altos títulos da nobreza - o nobre ele mesmo na sua circunscrição local. Pois, a oposição realmente estruturante do parâmetro weberiano é entre todas as sociedades conhecidas que praticam a inviabilização da formação de fortunas particulares, e a sociedade moderno-ocidental como a única onde, inversamente, o trânsito do capital e das fortunas particulares é livre, isto é, não depende da autorização de uma autoridade pessoalmente referendada como tal por todos os participantes da sociedade.
          Assim também a minha perspectiva do processo brasileiro não coincide com a de Chacon, pois se este integra a linha que se expressa por exemplo, em Clovis Bevilacqua, de rejeição à formação de um Estado nacional soberano, insistindo no desenvolvimento a partir da autonomia do jurídico, a meu ver isso é uma ilusão, pois não há essa autonomia sem a soberania do Estado em relação à ingerência das potências centrais.
          O direito não tem alçada para várias questões que são estritamente relacionadas a esse conflito centro-margens. Além disso, obviamente Estado não é sinônimo de ditadura, bem inversamente, a ditadura é a captura do Estado por um  único grupo dentro da sociedade de que ele deriva como o representante da sua heterogeneidade. A sociologia do subdesenvolvimento, desde os anos setenta,  tem insistido em que o processo do desenvolvimento é o da democracia, enquanto o Estado cujo governo é uma burocracia racional-legal, mas nós temos também que integrar a questão geopolítica nesse situamento do Estado como soberania, tratando-se do terceiro mundo já na atualidade do conflito Norte-Sul expresso no mapa geopolítico. À época de Bevilacqua, na transição ao século XX, uma posição mais coerente com essa perspectiva que integra sociedade como heterogeneidade e Estado foi por ele atribuída a Fernando Antunes.
           Não obstante, conserva-se o interesse de tratar a história da república como aquele litígio que assinalei, de interesse latifundiário-regional e interesse modernizante-nacional. Por exemplo,  Chacon opõe “tecnoburocracia patrimonial” e tecnoburocracia estadonovista. A patrimonial, colonial, envolve apenas o aparelhamento técnico da exploração comercial. A estadonovista é uma centralização dos poderes que pretende integrar todos os setores da vida pública, inclusive o sindical, como satélites do planejamento central. Se essa não é ainda a democracia racional-legal, ela expressa o caminho nesse sentido, pois entre burocracia estadonovista e colonial, situa-se o mero prolongamento do colonialismo pelo interesse latifundiário-agrário-exportador.
             Assim, quando se trata da transição da “ideologia e praxis do Estado Novo” para o que Chacon designa “ideologia e praxis da Democracia Populista” vigente entre 45 e o golpe militar nos sixties, o historicamente relevante é o que opõe filosofias políticas, respectivamente de burocratização-centralização e desburocratização-representação. Isso, a meu ver, compromete o vezo desses comentadores que ao mesmo tempo conceituam a irredutibilidade da ditadura estadonovista ao interregno democrático anterior ao golpe, mas continuam tratando as duas coisas como do mesmo modo destituídas da seriedade democrática ao mesnos quanto ao escopo constitucional do regime.
      Não obstante, o cerne da argumentação desde estudo de Chacon é a feição estatizante que a burocracia assume no processo político brasileiro, para ele isso sendo o mesmo que patrimonialismo. Como não se vê a extensão dos conceitos weberianos se não de forma tendenciosa, Chacon chega ao resultado de um desejável que seria uma poliarquia das funções gestoras, mas de que modo isso não é sinômino de Estado democrático é o que não fica muito claro, além de que toda a análise elide o componente geopolítico determinante do subdesenvolvlimento na margem.  
          Aqui o estatuto weberiano da análise de Chacon se torna ambíguo, portanto, pois ele não atinge o ideal da burocracia-racional-legal, mas quando se trata de tematizar a problemática das pretensões envolvidas nesse ideal, contenta-se com atribui-lo a defeitos internos ao processo brasileiro, sua origem histórica no colonialismo português, quando seria preciso, como na sociologia do subdesenvolvimento e na sociologia do terceiro mundo, ampliar a problemático num sentido estrutural abrangente do conflito norte/sul, onde até hsitoricamente seria preciso reconstituir o papel do imperialismo inglês na América Latina ao longo do século XIX.  
       Chacon cita Langoni, que assinalou essa feição assim chamada estatizante, mas definida patrimonialista, constante ao longo dos capítulos da história da república brasileira, como uma tendência dos governos que se mantém acima de “suas diferenças ideológicas”. Para explicar isso, Langoni postula a opção entre as hipóteses de uma concordância real entre os vários governos a propósito das relações Estado-Economia, ou ser o estatismo algo que convém às características do processo local do desenvolvimento econômico. Já se deveria assinalar, contudo, que uma das teorias que preconizam definições estritas para economias do terceiro mundo é justamente a derivada de Shumpeter, pelo que nessas economias é o governo, em vez do empresariado, que detém o papel importante no processo do desenvolvimento econômico. Mas isso não chega a ser tematizado aí.
    
    
                                                (nesse ponto da translação do meu texto, o provedor alterou arbitrariamente os espaços e o tipo da fonte, impedindo aplicação dos  comandos  correspondentes para corrigir  - mais um registro do mau atendimento e dos abusos constantes que se dispõe pelo uso da Internet no país. Habitualmente evito o uso, mas justamente porque nem isso garante que o processador de textos não seja afetado por abusos, sendo que não temos alternativa a processamento de texto senão cadernos, estou ocupando esse espaço com textos que espero estejam registrando o fato de que a produção cultural não está sendo representada pelo que se veicula na mídia como a mentalidade fascista característica do apartheidismo social já conceituado pelos historiadores, descalabro que se implantou no país com o neoliberalismo, vigente a partir da transição ao sécuo XXI). 


     3

          A complexidade do tema da burocracia em Weber é tão incontornável quanto sua importância. Já se sugeriu que, não obstante ter-se tornado absolutamente referencial na sociologia, o que torna o tema weberiano da burocracia tão complicado é que Weber não o tratou apenas como algo cujo interesse fosse apenas sociológico, ou, como resultou sua utilização para muitos funcionalistas, ao modo de um instrumento de classificação de organizações e sistemas socialmente atuantes.
         Weber é um historiador, tanto quanto um dos “pais” da sociologia contemporânea, e seu interesse é, ao mesmo tempo, definir: a) a burocracia como sistema de autoridade que se estava tornando pervasivo na sociedade capitalista ocidental; b) esta mesma sociedade, enquanto uma na qual a burocracia tem uma abrangência que extrapola qualquer alcance que pudesse ter tido anteriormente nas sociedades históricas; c) o processo histórico pelo qual um estado de coisas capitalista-burocrático pode ter se instituído no ocidente moderno.
           Ora, o problema para aqueles que isolam o objetivo “a” como o todo do seu interesse sociológico, é o seguinte. Compreende-se o nexo do pervasivo com o que pode haver de estratégico nessa opção – o liame aí sendo a empresa, tanto algo que é basicamente uma organização burocrática, quanto algo que praticamente define o mundo capitalista como sua unidade de composição. Mais importante, contudo, seria ressaltar que essa redução não foi a via de Weber, e por que. Se nos esquecermos disso, pensaremos que Weber é deliberada ou inadvertidamente confuso. Mas, na verdade, o problema representado pelo fato de que são dois os termos que aglutinam a relação entre os três itens que apontamos como constitutivos do seu pensamento, só parece assim um problema se os reduzimos a um único interesse.
           Esses dois termos são “razão” e “poder”, e o que os weberianos constatam, ao tentar utilizar de um modo estritamente funcional o seu ideal-tipo racional-legal é que o próprio objetivo desse uso implica a necessidade de optar entre ambos como aquilo que define o “modelo burocrático” - o que Gouldner salientou ao observar que Weber estabeleceu a efetividade da autoridade legal em torno dos fins, utilitários ou racionais, das normas que impõe. Mas o estabelecimento dessas normas, Weber aceitou poder ser derivada por acordo ou por imposição, e Gouldner nota que, se a cultura não for algo neutro, então o que ocorre numa organização burocrática deve ser muito irredutível se suas normas são impostas ou, como seria mais da nossa índole, obtidas por acordo.
          Ele supõe que Weber não o discriminou suficientemente, assim como também não discerniu a propósito do sujeito da autoridade, por ter utilizado a “burocracia governamental, aparentemente solidária, como modelo implícito”. Por outro lado, Gouldner, citado por Hall, deduziu que todas as dificuldades residem no fato de que os sociólogos procuram obter da teoria de Weber  um modelo burocrático, mas essa teoria é, “ao invés disso, um tipo ideal no qual certas tendências de estruturas concretas são postas em evidência pelo fato de serem enfatizadas”.
           Mas se lembrarmos da ambientação epistemológica em que se desenvolve a teorização de Weber, podemos notar que o seu interesse consiste em manter a cientificidade em humanities, contra a hipótese do verstehen – o compreender da alteridade da cultura enquanto algo que não se resume a um objeto, mas é dotado de sentido intrínseco para o sujeito da cultura – como obstáculo insuperável à existência de uma ciência (racionalidade) do humano.
           Entre razão e poder o que temos em Weber não é uma disjunção categorial. É, sim, a compreensão de uma das modalidades pelo qual o poder se exerce, aquela presente numa sociedade específica, a moderna-ocidental. Ele se exerce por meio da razão (racionalidade), mas contrariamente ao que os positivistas pensavam, isso precisa, justamente para ser ciência em vez de idealização, ser definido quanto aos meios concretos pelos quais se efetiva, em vez de ser suposto como um estado super-abrangente da psicologia à história, compactando assim o todo do social.
           A meu ver, o status da sociologia em Weber é aproximável a um intuito como o de Simmel, ambos nisso sendo oponíveis a Durkheim e Marx.
           Em Marx e Durkheim, o funcionalismo é genuinamente a via metodológica que produzem, enquanto relacionados ao positivismo quanto à têmpera ocidentalizante dos seus projetos, mas já equacionando os limites do saber – os conceitos – positivistas. Mas Weber e Simmel estão mais coerentes com o que nos EUA se tipifica nessa transição ao século XX, a sociologia empírica de Robert Park e a Escola de Chicago, enquanto na Inglaterra essa tendência estárá se tornando majoritária com o casal Sidney e Beatrice Webb que veremos influentes no cenário brasileiro democrático após o estadonovismo.
         O interesse em Weber e Simmel extrapola um tanto a exclusividade da via empírica, pois se devotam a prover instrumentos formais de análise, ficando ainda na circunscrição da tarefa de definir “a” sociedade, mas note-se que esse interesse é bem oposto ao de fornecer definições super-abrangentes do tipo “que é” a coesão social, o que vem a ser o mesmo que indagar “que é” a sociedade, ou qual é o motor da história, etc.. Ele reside mais na intenção de reconstituir a especificidade dos fenômenos sociais.
          Esses fenômenos são os que resultariam como o que realmente ocorre em quaisquer sociedades observáveis, mas isso implica o inverso do intuito da definição super-abrangente, porquanto os fenômenos concretos de uma sociedade podem não ter nada a ver com aqueles que constituem o cotidiano de outra sociedade.
          O que Weber especialmente almeja é construir uma forma de definição do observável, uma função, no sentido matemático e não biológico do termo, que relacione as variáveis da observação, mas sociologicamente modulada, ou seja, precisamente investindo o singular de cada sociedade no papel de variáveis, de modo que por “função” não podemos ter o correlato de alguma definição universal da concretude do fato social, somente de sua forma.
          A forma em sociologia é agora o que tem sentido para os participantes, e por aí, tanto em Weber quanto em Simmel a ênfase é a ação enquanto social, ao mesmo tempo o que é – o que pode ser – feito numa sociedade como fenômeno observável nela, e o que os agentes fazem como o que dá sentido à sua prática de ser humano socializado, isto é, ser cultural. Simmel pensou o que estou designando nesse parâmetro restrito de função – que vemos não ser o que o funcionalismo organicista particularmente investiu – como o que ele designou a “sociação”, o conjunto interligado de ações que tornam uma efetividade social algo intrinsecamente compreensível para seus agentes, o que implica que isso pode fazer dessa efetividade algo inapreensível, em termos de inteligibilidade, para os que não o são, enquanto uma função orgânica é sempre compreensível quanto aos seus objetivos, mesmo por agentes de outras sociedades, ainda que estes possam não poder reconstituir o nexo da ação ao objetivo.
              Mas o “ideal-tipo” de Weber é um tanto mais flexível, o que ainda assim acarretou seu aproveitamento pelo funcionalismo organicista, processo que culmina na grande sistematização de Parsons que se auto-interpretou formulada na base da teoria da ação social de Weber, e tendo-a como unidade de composição do seu quadro universal de funções sociais. Como alguns autores já observaram, desde o sucesso do funcionalismo, e particularmente de Parsons, sempre se compreende Weber por meio desse aproveitamento parsoniano. Restituir a sua originalidade metodológica me parece evidenciar-se importante justamente quando essa via funcionalista já está tão super-explorada que as dificuldades tornam-se aparentes.
            Assinalamos, contudo, que a sociologia da burocracia, mais que a sistematização de Parsons, tem sido o canal desse carreamento do “ideal tipo” para a constituição de um “modelo” sociológico. Se pudermos mostrar que tratava-se disso, de um carreamento, em vez de uma intenção constituída ela mesma nesse rumo, aclarar o pensamento weberiano se tornará duplamente útil: ora para mostrar em que os objetivos funcionalistas não são os mesmos do já prescrito em Weber, o que implica que os teóricos da burocracia devem tematizar sua margem de independência e/ou que nós precisamos fazê-lo ao nos aproximar de suas teorizações; ora para liberar o que é estritamente o pensamento weberiano da burocracia e do ideal-tipo.
         Quanto ao ideal-tipo, é o cerne do método weberiano. Consiste na descrição de uma ação socialmente exequível, logo, por definição, ação possível dentro de uma especificidade histórico-antropológica dada, não generalizável para quaisquer tempo e lugar.
          O escopo da descrição não é “comportamental”. Se um ritual de dança da chuva existe numa certa sociedade, nela isso é algo tão sociologicamente constitutivo quanto a existência do poder legislativo nas democracias. O sociólogo não está interessado no know-how do dançarino ou do deputado, mas sim em reconstituir a sua ação enquanto social – ou seja, ele quer saber como é que o dançarino e o deputado compreendem sua ação como algo que não foi nenhum deles que inventou ou que não se esgota na intenção de ninguém em particular, mas tem um sentido pelo qual ela afeta o conjunto da sociedade.
          Nessa sociedade estudada, o dançarino age como uma autoridade, ou como o comum dos membros de uma confraria? Ele está possuído por uma entidade e assim nesse momento tornando-se diverso do conjunto social, ou ele está representando o conjunto social perante o elemento alheio? O deputado está infenso, pela próprio costume dessa sociedade, a distorções do interesse público, por interesses privados, ou isso é o que habitualmente ocorre? Esse tipo de pergunta é no que o sociólogo, nessa linha que estou designando mais empírica, por oposição à generalização do tipo de Marx e Durkheim, estaria interessado.
           A discussão dessa escolha terminológica, a meu ver, não deveria prosseguir no vácuo, ao preço de ser inevitável a tautologia – desde que eu prescrevo o que é o analítico, o clínico e o empírico em sociologia, então tudo o mais caberá somente nessa prescrição, o que é, aliás, o mesmo problema das concepções adjetivas em estética, onde o pré-escrito se refere ao bom e ao ruim. Mas, sim, desenvolver-se tendo por referencial a história da sociologia. Por esse viés, teríamos um quadro bem delineável, mas veríamos que o fator importante são as extrações nacionais dos estudos, na circunscrição do século XX. Isso não significa obviamente que uma tendência resume o todo da pesquisa num país, mas sim que há constantes que se tornaram assinaláveis, como contribuição na história da sociologia, de tendências típicas da produção acadêmica desses países.
           Nos Estados Unidos, a sociologia da Escola de Chicago demarca a especificidade do exercício dessa ciência no país, bem em princípios de século. A preferência empírica se afirma com tanta consistência e utilidade quanto o pode testemunhar a criação da “ecologia urbana” - um método de descrição e compreensão dos processos que determinam localizações socialmente relevantes nas cidades. Há manifesta influência, ou pelo menos conhecimento, de Simmel nessa Escola, tendo Robert Park estudado com Simmel na Alemanha, mas seus resultados e seus métodos observacionais são bem originais. Não só o pragmatismo se torna a produção estadunidense de exportação em nível internacional, mas também a ecologia urbana da Escola de Chicago ostenta essa característica, repercutindo na Inglaterra e na França, ainda influente na atualidade. A sociologia urbana em geral tem aqui as suas origens.
           Como "ecologia social", a sociologia da Escola de Chicago não só instituiu um ramo de estudos sociológicos, mas forneceu também um esquema da movimentação na cidade moderna que continua válido, a "teoria das zonas concêntricas". Há mudança na configuração dos domicílios, consequentemente da caracterização sociológica dos bairros, coordenada ao avanço do capitalismo. Este concentra suas firmas e serviços no centro da cidade. A rede dos negócios vai aumentando, e ocupando as regiões vizinhas ao centro, que antes eram áreas residenciais de famílias burguesas.
         Ora, com a proliferação de firmas ocorre a necessidade de instalação dos funcionários, geralmente de baixo poder aquisitivo, motivo pelo que ao redor da faixa de concentração das firmas criam-se áreas de concentração de moradias de baixa renda ou cortiços. O movimento tende à expansão, e sempre mais bairros nas proximidades do centro vão sendo afetados. As famílias burguesas migram para bairros projetados para elas, afastados dessa zona. Entre a região de baixa renda circundando o centro do capitalismo, e as regiões alvo das famílias burguesas, se estende uma zona crepuscular onde dominam os cortiços. Esse é um perfil comum a grandes cidades. No Rio de Janeiro, bairros como Grajaú ou Tijuca já não são, como há até duas ou três décadas, muito claramente opostos a subúrbios, tendo sido nitidamente proletarizados, com mudança óbvia de características dos costumes.
               Esses resultados da pioneira sociologia estadunidense servem, também, para cortar as críticas que os formalistas costumam lançar a tudo o que consideram empírico – como Rex, referindo-se aos Webb, pelo que afirma que eles ao mesmo tempo lidam com entidades metafísicas pensando que são concretas, as instituições; e recuam quando se trata de fornecer o arcabouço teórico evidentemente necessário ao tratamento dos dados empíricos conforme um pressuposto de que podem ser tratados de forma igualmente empírica, na base de estatística e sistematização. Rex limita a sociologia empírica a uma coleta de informações – como a de Booth e Rowntree a propósito da pobreza. Isso teria para ele o mérito de eliminar pressupostos falsos a propósito do fenômeno observado, mas não chega ao patamar da compreensão do que eles são ou de suas causas. Mas o que me parece efetivamente limitante da sua concepção é o foco britânico no qual confinou a tendência empírica em sociologia.
             Como estamos notando, ela é mais importante nos EUA, mas sua motivação é que se torna essencial esclarecer. Ora, a sociologia do século XX começa por ter que romper com o positivismo, isto é, com a sociologia do século XIX, por esse fator novo que obrigou do mesmo modo toda a área de ciências humanas à mesma ruptura, que é a pesquisa de campo, algo basicamente empírico – aqui são fundamentais os trabalhos de Malinowski e Radcliffe-Brown.
            Como observou jocosamente Beattie, no século XIX uma sistematização narrativa de todos os mitos conhecidos, como a de Frazer (O ramo de ouro), podia ser feita de modo tal que ao ser indagado se jamais havia travado contato efetivo com qualquer sociedade não-ocidental, o pesquisador responderia muito dignamente: “Deus me livre!”.
           A questão para a sociologia de inícios de século era então como lidar com a pesquisa de campo, se o que ela revela é a não universalidade dos fenômenos observados, a sua especificidade no tempo e no espaço. Ou seja, a questão aqui é da alteridade das culturas. Foi isso que determinou a cisão do explicar e do compreender, como tarefas relacionadas respectivamente a fenômenos do mundo natural e do mundo social. Explicamos coisas na base de como funcionam, mas quando se trata de pessoas, temos que o que elas fazem só tem o sentido que elas mesmas atribuem ao que fazem. Temos que compreender o que elas compreendem, não julgar por parâmetros que lhes são estranhos, ou então nada sabemos realmente sobre elas.
          Mas restou a questão de se um compreender assim pode ser científico – ou, como supôs Dilthey, exclusivamente literário e mesmo poético, em todo caso empático. Weber é o sociólogo pioneiro, no cenário dessa problemática do “compreender”, que optou pela sua cientificidade. A história da sociologia do século XX, como as escolhas que foram nacionalmente designadas, entre EUA, França, Inglaterra e Alemanha, pode ser reconstituída em torno da decisão a propósito do trabalho de campo, ou seja, da base empírica da sociologia, e desta como algo que só pode derivar dessa base.
         O funcionalismo, como uma modulação da sociologia que já interpõe essa opção a propósito do trabalho de campo, significa a escolha pela generalização dos dados. Mas isso significa coisas diferentes entre EUA e França, onde o funcionalismo se tipificou como o exercício sociológico por excelência. Isso ocorre na França desde o início do século, dada a centralidade da figura de Durkheim, e depois, de Mauss.
        Nos EUA, o funcionalismo sucede o pioneirismo da Escola de Chicago, e representa a institucionalização mais acadêmica da sociologia. Nos tempos de Chicago, a universidade, o jornalismo e um certo aventureirismo pessoal andavam juntos, e a tudo isso se acrescentava o envolvimento no ativismo generalizado no cenário estadunidense dessa época, que envolveu greves e um grande número de protestos públicos. Aí a tônica era contra a injustiça social, como o racismo e a pobreza. Não havia nada, como notou Rorty, que tangenciasse o ativismo que retornou nos sixties – agora envolvendo uma crítica ao sujeito majoritário da civilização ocidental, sendo, por exemplo, uma crítica ao machismo, e quanto ao anti-racismo, não significava mais um apelo por igualdade, mas a igualdade no plano civil comportava a conscientização da singularidade cultural.
           O importante, quanto ao que estamos notando a propósito da sociologia, é que lá pelos anos vinte, esse ativismo retrocede nos EUA, pela projeção de uma esquerda orgânica – institucionalizada, atuando dentro das instituições por intelectuais e políticos profissionais, não pelo povo, nem nas ruas. Enquanto a sociologia tornava-se um exercício exclusivamente acadêmico, por onde o funcionalismo tornou-se uma sistematização da ação social e depois uma especialização do estudo da burocracia, em todo caso, tendo Weber como base teórica.
         Examinando um pouco mais detidamente esse papel do funcionalismo, temos que tanto na França quanto nos EUA, ele deriva como uma certa sistematização dos dados do trabalho de campo, não como algo exclusivamente formal-conceitual, nem como uma teorização tão estruturada quanto o marxismo. Na França, que o funcionalismo é um desdobramento da sociologia empírica, se nota pelo fato de Durkheim, antes de Mauss, ser mais sensível que este ao tratamento de fenômenos sociais dados. Para Durkheim, a coesão social e sua explicação objetiva decorre como um dos ramos dos estudos sociológicos, enquanto o papel do “dom” - como definindo universalmente para Mauss a natureza da integração social – é mais restritivo desse exercício como conceitual ou analítico. Nos Estados Unidos, igualmente há progressivo afastamento da base empírica. Mas neste país, a solidariedade a essa base mesmo no período acadêmico-formal, como estamos verificando, é muito maior.
             Na Inglaterra, a sociologia empírica se manteve dominante, mas isso, a meu ver, por que a teoria social  nesse país nunca se dissociou completamente de um viés não acadêmico, mas político – isso desde o utilitarismo de Bentham e dos Mill. Aí, no século XX, ela mesma desempenha um papel de ação social, como reformismo ou oposição trabalhista ao monopolismo capitalista. É nesse viés de oposição que a projeção das linhas da sociologia inglesa intercepta uma característica que está em trânsito na história dessa época, a saber, a luta dos governos, como nos EUA, contra o monopolismo que se estava tornando um flagelo social – por que, como já vimos, o acúmulo do poder das empresas ameaçava, por meios práticos, a representatividade formal dos governos.
           Apenas, parece-me que só na Inglaterra essa luta interpõe diretamente a sociologia que com ela se envolve, enquanto na Alemanha isso ocorre indiretamente – na França e nos EUA, como vimos, trata-se da tendência oposta, pelo que a sociologia tipicamente contemporânea se afasta do quadro histórico factual, na França desde o início com Durkheim, nos Eua a partir da viragem funcionalista desde os anos trinta . Além disso, devemos notar que para a sociologia empírica inglesa, como para os Webb, nunca foi uma questão de ativismo popular,como vimos nos Eua.
        Inversamente, para eles a sociologia, na forma do levantamento dos dados pertinentes, era o instrumento da gestão dos profissionais qualificados e politicamente engajados na superação da desigualdade e da injustiça social. O não-iniciado estava quase que por definição comprometido com o mascaramento do real pela ignorância. Assim, se os questionários eram sua utilização favorita, eles instruíam a aplicação: se como entrevistador você considera absolutamente normal a resposta do entrevistado sobre algum tópico, então pelo menos nisso você é ideologicamente cúmplice do entrevistado. O ponto é que para qualquer tópico o sociólogo devia estar consciente de que toda resposta é uma variável na gama da heterogeneidade e possivelmente do conflito social. Considerá-la como normal implica esquecer a gama, cujo mapeamento é o escopo do questionário.
           A sociologia na Alemanha é afetada pelos acontecimentos das guerras – o modo como ela não pode se desenvolver sem ser utilizada pelos propagandistas do sistema totalitário, isto é, não pode nesse país haver descarte imediato da ideologia pseudo-evolucionista e do darwinismo social, excetuando-se o círculo de Weber, ainda que, como já assinalamos, quanto a este estivesse funcionalmente destinado pelas fórmulas da “tradição”.
         Esse culturalismo, ainda que presentificando as noções “funcionalistas” de funções organicamente integrantes de uma estrutura como um todo, é muito objetivamente orientado para formular uma superioridade da raça nórdica, ou a super-excelência da ditadura nazi-fascista. Há, portanto, funcionalismo na Alemanha, mas ele não é representativo dos problemas epistemologicamente efetivos dessa tendência, porquanto estes surgem da ruptura em relação ao darwinismo social, enquanto na Alemanha trata-se de utilizá-lo para manter esse pseudo-evolucionismo.
           Assim, a sociologia na Alemanha, após a geração dos criadores da sociologia contemporânea, Weber e Simmel, não seria um item pertinente para uma história da sociologia não fosse o Curso foucaultiano a propósito do governo moderno-ocidental – na tradução brasileira intitulado “Nascimento da biopolítica” – pelo que descobre-se em trânsito nesse país, desde o círculo de Weber até a reconstrução pós-guerras, ou seja, em locus não-nazistas, uma teorização sociológica que envolve o que nos EUA está no cerne do envolvimento de funcionalismo e sociologia da burocracia.     
          Contudo, na Alemanha é realçado o viés estritamente weberiano desse envolvimento, a saber, as relações empresa-Estado, economia-política, na Alemanha sendo o caso da derivação de uma escola econômica na raiz do neoliberalismo, conforme Foucault. Mas aqui também ocorre um carreamento do que era o intuito propriamente compreensivo dos inícios, só que agora para atender aos propósitos da fenomenologia.
         Os acontecimentos da luta anti-truste refletem nesse ponto, quando se trata dessa teorização que de seu entorno alemão irá saltar para a viragem neoliberal em curso após a guerra fria no inteiro ocidente. Pois, a questão aí é do confronto de duas teses a propósito dessas relações, a saber, tese do dirigismo-planejamento estatal contra a da autonomia absoluta do mercado. Podemos desde já notar que é esse o ponto em que a sociologia da burocracia se torna apta como instrumento da apreciação histórica do processo republicano brasileiro. A sociologia do terceiro mundo, efetivamente, vai aproveitar-se da sociologia da burocracia para primeiro descrever o capitalismo como implementando-se pelos estágios da consolidação burocrática-legal, e depois para examinar esses estágios no parâmetro distorcido das economias exploradas de margem.
         Foucault traça basicamente uma oposição entre os desenvolvimentos do liberalismo clássico e do neoliberalismo como a oposição histórica entre as filosofias de governo do período absolutista e do período contemporâneo.
         Entre os séculos XVII e XVIII, e conforme o liberalismo clássico, há uma positividade do governo, que deve agir como mediador do direito dos súditos. A partir do século XIX, a ação do governo torna-se uma retração, uma continência. É que a cientificidade, a racionalidade da economia política, toma a frente das decisões públicas, em vez do direito. É do saber, não do poder, que deriva a legitimidade da ordem, naquilo em que sua justificativa continua sendo o bem social. O poder é agora a garantia da regulação estrita do saber, contra o que seria qualquer interesse alheio a essa razão que não se concebe como um atributo geral, mas como ciência econômica.
          O problema que o monopolismo capitalista coloca a essa filosofia neoliberal do governo, assentada como está na premissa de que a justiça social deriva automaticamente da racionalidade administrativa, é então considerável, pois o governo precisa fazer o que não pode – por que não tem a competência do saber – isto é, intervir no mercado, seja para evitar o caos da superprodução, seja para evitar a ilegitimidade do processo social açambarcado pela dominação monopolista.
            No entanto, aqui considero que Foucault não viu o fundamental nesse momento, que foi a emergência nos Eua de uma economia cujo funcionamento, para inviabilizar a falência – não especialmente anti-truste -  deixou de se regular pelos parâmetros conhecidos na Europa, como descreve Pierre George a propósito desse “neocapitalismo”. A revolução estadunidense do mercado se deve às inovações:  foco nos bens de consumação, modelagem do mercado pela psicologia social, produção sempre abaixo da capacidade, pesquisa tecnológica nesse lugar vago da produção, fontes de energia e matérias primas no terceiro mundo mais que as próprias. E o que George não estudou, o intervencionismo ilegal dos Eua no terceiro-mundo, como se nota em Claude Julien e nos estudos nesse gênero, o que segundo Julien é ainda relacionável ao papel ímpar da indústria militar na economia estadunidense.
          Ou seja, a dicotomia europeia de dirigismo e liberdade de mercado não se ajusta à descrição da articulação estadunidense entre governo e capital, isso de um modo que inviabiliza o parâmetro intrínseco do capitalismo europeu como, de Marx a Weber, algo explicável sem necessidade de se inserir constitutivamente o colonialismo e o imperialismo
         Normalmente o comprometimento do liberalismo na sua forma clássica não é apresentado dessa forma foucaultiana, isto é, como uma questão da governamentalidade. Somente enquanto a doutrina econômica da livre iniciativa e do “deixar fazer” (laissez faire), é que se a examina para mostrar que, se ela se afirma após o mercantilismo da época colonial, na transição ao século XIX, quando se aproxima o século XX já está comprometida para efeitos práticos, devido ao monopolismo que se caracteriza pela formação dos poderosos trustes, cartéis e holdings que impede a qualquer descrição do que ocorre no mercado em termos de livre iniciativa ser seriamente considerada.
           O mercado, em inícios do século XX, está monopolizado pelos grandes conglomerados, e nada ocorre que não esteja sob o seu controle – da formação de novas empresas até o tipo de veículo e de caminho, se trem, ônibus, estrada de rodagem ou ferrovia, etc., que alguém poderá obter para locomover-se de casa ao trabalho. Na literatura especializada, de sociólogos e economistas, essa temática tornou-se recorrente, o modo como os menores detalhes do nosso cotidiano em sociedade estão regulados pelas cem ou duzentas maiores empresas do mundo.
           Até a sobrevivência de alguma escala de pequenos negócios deriva de que isso lhes interessa – como forma do grande empresariado praticar o dumping, elevando o preço no mercado interno para baratear ao máximo no mercado externo, já que o negócio pequeno não pode baratear os seus custos de produção. O monopolizar no sentido da obtenção do poder de controlar, tem mais a ver com a designação desse monopolismo, do que propriamente tratar-se de “monopólio” – converter-se um certo mercado ao fornecimento de um único grupo, ainda que isso não seja impossível em economia, mas nesse caso o termo é monopsônio, não monopólio.
           Conforme a história trata habitualmente esse tema, é somente após a guerra fria que o neoliberalismo se impõe, quando os dois eixos de intervenção do Estado na economia deixam de ser cruciais – primeiro, a questão dos conglomerados empresariais; depois, a adoção do keynesianismo – por que os conglomerados se convertem em transnacionais e sua dinâmica deixa de se apoiar no controle interno para ampliar as possibilidades vantajosas aos governos dos países centrais, e porque na transição aos anos oitenta já parece claro que a URSS não oferece perigo ao mundo capitalista, de modo que manter a imagem de liberação e assistencialismo já não se mostra necessário aos EUA.
          No entanto, esse quadro é grandemente complicado por que pela rubrica da intervenção do Estado na economia se reúnem fatos históricos de procedência muito irredutíveis, o que cria ambiguidade no tratamento do tema. Aparentemente, temos um capítulo do bom governo, especialmente anglo-americano, pelo que o poder público tenta preservar a sociedade dos danos que o acirramento da concorrência entre empresas e a formação dos conglomerados que “resolve” o problema da concorrência, pode acarretar. Assim, nas palavras do vice-presidente Wallace, à época da presidência Delano Roosevelt, que se tornaram o cromo classicamente ilustrativo: “Não era de desejar uma paz que nos livrasse do fascismo para cair sob o jugo dos governos de gangsters manobrados por trás dos bastidores, pelos imperialistas enlouquecidos pelo poder do dinheiro".
           Mas a intervenção estatal também é um tópico incontornável no capítulo de implantação do Neocolonialismo – que não poderia deixar de parte a iniciativa privada. Assim, ora o Estado é o agente do protecionismo local, como no caso inglês em que esse ingrediente é fundamental para evitar a depressão devido à elevação concorrencial do mercado alemão; ora torna-se efetivamente o veículo do monopólio empresarial no mundo neocolonial, como na interessantes memória do general Smedley Butler, registrada por Leo Huberman – que citei do mesmo modo num blog sobre o "neocapitalismo" estadunidense.
          Confessa o general que na transformação da mexicana Tampico em um lugar seguro para “os interesses petrolíferos americanos”; de Cuba e do Haiti em “lugares decentes para que os rapazes do National City Bank pudessem recolher os lucros”, como na purificação da Nicarágua para os “interesses de uma casa bancária internacional dos Irmãos Brown”; no trazer à luz a República Dominicana “para os interesses açucareiros norte-americanos” e Honduras para as companhias fruteiras, incluindo ainda a China, onde nada devia se contrapor às atividades da Standard Oil Company; em todos esses cenários o general atuou como “guarda-costas de alta classe para os homens de negócio, para Wall Street e para os banqueiros”.
           A participação dos exércitos nessa operação neocolonial afro-asiática é muito vividamente relatada na História da Riqueza do Homem, de Hubberman, mas também é tópico da sociologia empírica. Nos EUA, Park desenvolveu um intenso trabalho crítico da selvageria do capitalismo monopolista, como na série de reportagens sobre a anexação do Congo pelo rei da Bélgica e também na que realizou a propósito dos “tubarões” de Chicaco
         O que exemplifica a importância, no estudo dessa época, das particularidades nacionais, sendo que a distribuição das posições políticas na Europa está polarizada entre a burguesia e o proletariado: grande e pequena burguesia conservadoras, e proletariado evolvendo à radicalização da Segunda Internacional. Enquanto nos EUA, a época do ativismo demarca uma espécie de frente ampla de contestação em que convergem exigências políticas que extrapolam a questão de classe – como a superação do racismo – na Europa a expansão do conservadorismo encontra justamente no racismo a linguagem de que necessita para promover o discurso dos totalitarismos.


   4 -

        Na abordagem de Foucault, como vimos, o neoliberalismo é uma filosofia de governo que se desdobra como consequência da emergência da Economia Política como ciência, e em geral, de tudo o que se relaciona a essa emergência, como a sociedade capitalista tecno-cientificamente centrada. Mas, enquanto uma doutrina econômica, o neoliberalismo é a incorporação de uma teoria da concorrência no que era antes o liberalismo da livre iniciativa, de modo a solver também o paradoxo da necessidade, sentida pelo próprio capital, da ação do Estado.
        Assim, o neoliberalismo está oposto explicitamente ao dirigismo soviético, mas quanto às relações empresa-estado no quadro da luta anti-monopolista da metade inicial do século XX, Foucault desenvolve com minúcia a questão, o que envolve a temática do keynesianismo prescrevendo o incentivo governamental na economia local.
        Em todo caso, parece-me claro que Foucault não está opondo as duas formas de governo historicamente associáveis aos dois períodos em questão, isto é, o absolutismo do período clássico, e o Estado constitucional contemporâneo que vai se consolidar no século XX geralmente como democracia. E, sim, duas filosofias de governo, como assinalei, ou seja, a clássica teoria (filosofia) política com sua filosofia do pacto social, e a Economia ( ciência) política que comparte a emergência das ciências sociais autônomas num quadro em que essa partição torna-se fundamental na medida que determina a única forma histórica conhecida de uma sociedade em que a posição dos papéis sociais é dada pela interiorização identitária a partir de um nexo específico entre ciência e sociedade – não por ritos, crenças, ou elementos que viabilizam uma totalidade de visão de mundo ou ao menos da sociedade ela mesma, como um conhecimento partilhado.
          Por aí a situação um tanto jocosa desse Curso. Tratar-se-ia da biopolítica, isto é, de como as ciências humanas e especialmente as ciências médicas tornaram-se constitutivas dessa interiorização identitária, sendo o problema aí, o seguinte, conforme se depreende de outros textos foucaultianos: as ciências contemporâneas não podem constituir uma “sabedoria” do mundo como uma visão total do homem, mas enquanto são elas que se tornam a base do verdadeiro quanto à discursividade, é essa discursividade o liame que se torna comprovável no sentido de um senso comum que se deriva das ciências, mas não apenas como numa distorção ideológica, e sim algo que retroage sobre a forma como são constituídas – ciências de observação das populações, não de neutralidade objetiva; de assujeitamento, não de classificação universal.
           Mas como esse bloco saber-poder está historicamente entrelaçado com a sui generis formação desse poder da sociedade capitalista, pelo lado da governamentalidade, no Curso Foucault se põe a desenvolver o tema de como isso se constitui, detendo-se portanto na análise da Economia política – até que o semestre se completa e ele nota que não chegou a abordar o assunto principal, do “biopoder” .
           Mas o resultado é bem fecundo, já que uma série de questões axiais à sociologia, creio que mais que à História, ainda que sobretudo interessante à história da sociologia, se desenvolve nessa oportunidade.
           Aparentemente Weber, não obstante ser referenciado, não é bem o foco do que Foucault está veiculando como uma descoberta sua – também sem importar o fato dele se demorar nas desculpas de que aquilo que apresenta é trivial. Se os dados históricos não são de fato novidade, eis por que seria importante deslocar o foco da recepção para a sociologia, parece-me. Uma vez isso feito, a novidade da abordagem se mostra plenamente.
          Trata-se manifestamente de um princípio de continuidade onde normalmente vemos várias direções sobrepostas. Se habitualmente teríamos que discernir entre as várias doutrinas do pacto social, para o período “clássico” (sécs. XVII e XVIII), o que Foucault conceitua é a unidade da inteligibilidade que os engloba, esclarecendo aquilo de que se pôde bifurcar possibilidades como doutrinas distintas. Aos nossos propósitos sociológicos, interessa mais notar como é que esse método vai ser aplicado ao período contemporâneo.
        É essencial notar que essa unidade não é ideal, e sim resulta como uma multiplicidade, uma “heterogeneidade” na terminologia de Foucault, cuja articulação também não é como a estrutura do modo de produção marx-althusseriano, um conjunto logicamente coerente de fatores que se entre-implicam na factualidade – como a necessidade material da produção e as relações sociais que por ela se determinam, ainda que a novidade de Althusser tenha sido mostrar que essa determinação é limitada a componentes que não predizem o conteúdo da ideologia, e ainda que compreendam seu lugar.
          A articulação em Foucault é inteiramente contingente, ainda que ela determine estruturalmente uma época. Ela se faz do que ele designa o par série de práticas/regime de verdade como no que designamos o bloco saber-poder cuja dobra, o modo como esse bloco é atuante num sentido sócio-histórico preciso, acarreta a subjetivação, a dotação de sentido dos papéis sociais – e já que na modernidade ele não é atuante senão como interioridade, como produção de subjetividade, isso pressupõe uma complicação notável no que tange ao período clássico, pois aí já há “dobra” no sentido do sujeito, mas não ainda a subjetividade que só as ciências humanas interpõe no quadro histórico. Esse problema não é, evidentemente, abordado no Curso, mas se atribui geralmente como um locus de apreciação da obra de Foucault.
          Quanto à articulação, é o que poderíamos referenciar como a crítica deleuziana a Foucault, que de certo modo tangencia a que certos historiadores, influenciados pelo próprio Foucault quanto a questões de método, sugerem como seu inegável resultado sistêmico.
           O que Deleuze teria observado seria que se Foucault não se colocou a questão do sujeito, somente a questão social da produção de subjetividade, como poderia pensar em termos de liberdade? Mas Foucault se pronunciou como essencialmente engajado numa produção conceitual não funcionalista, num pensamento da história que não acarretava qualquer necessitarismo. Portanto, ele não estava interessado em fornecer uma justificação, por assim expressar, dos papéis sociais, mas, bem inversamente, em liberar a crítica mais extrema do que poderíamos designar a dominação identitária moderno-ocidental.
           Logo, ele devia supor que havia algo mais no desejo que a destinação da subjetividade – mas ao que parece não se colocou a tarefa de tematizá-lo. Nas derivas pós-modernistas do pós-estruturalismo foucaultiano, cuida-se geralmente dessa lacuna, nela enxertando Lacan, como Paulo Lavigne sugeriu ser o caso em Judith Butler, mas na verdade nesta trata-se de uma crítica ao que julgou, a meu ver não de modo pertinente, a teoria foucaultiana da sexualidade.
            Os próprios lacanianos ortodoxos como Lavigne criticam essa abordagem – para eles o inconsciente ser um processo identitário não implica necessariamente dominação, em Foucault sinônimo de constituição sócio-identitária; mas quanto às relações interpessoais repressivas, coisificadoras, etc., isso se conceitua em Lacan como uma deriva neurótica do desejo, o “falogocentrismo”.
              Na verdade, há aí uma decisão teórica limítrofe do pós-estruturalismo. Os psicanalistas e os marxistas estão de acordo com o ponto de vista pelo qual “dominação” nesse sentido “identitário” não é o problema sócio-político, mas sim cultural, e mesmo isso apenas enquanto nível que interpela o que efetivamente é o caso quando se fala de algo como neurose, o domínio privado.
             Um marxista como Jameson já não reduz todo o cultural ideologicamente como algo que pudesse elidir o privado (simbólico), o que se relaciona ao inconsciente – o modo como constituímos relações inteligíveis desde a condição de sujeitos de linguagem. As classes e seu conflito, em todo caso, dependem de já sermos sujeitos constituídos em nível simbólico, mas não é nesse nível que se constituem, nessa via que procura preservar a todo custo a fronteira entre público e privado, assim como para o psicanalista seria absurdo supor tratar “neurose” de algum modo que não o setting analítico privado.
           Foucault e os pós-estruturalistas de um modo geral concordam que a dominação em nível identitário é algo mais que cultural, enquanto o cultural, o político, o econômico e o desejo estão imbricados, e historicamente, do ponto de vista da constituição do social.
            Mas essa decisão é complicada, dependendo de como compreendemos teorizações cruciais como as de Freud, Lacan, e dos pós-estruturalistas, lembrando que nenhuma delas é um todo consensual na sua recepção, e que o modo como os lemos implica contínua revisão não só dos seus parâmetros como das interpretações inúmeras pelas quais eles se tornam tematizados. Se em torno dessas questões é que se desenvolve muito da produção conceitual contemporânea, nesse momento nosso interesse é estritamente o que podemos haurir como leitura sociológica do Curso foucaultiano, e esse problema não interfere diretamente nesse intuito, ainda que isso não signifique não ser pertinente.
          Foucault traça duas demarcações no plano da governamentalidade moderna, portanto posterior à teoria filosófico-política e já na circunscrição da ciência da Economia. Inicialmente temos a seu ver, na transição ao século XIX, mas ainda num cenário aufklärung, a emergência do liberalismo como aquela restrição da ação governamental derivada do novo conceito de competência em matéria econômica, agora estritamente científica. Nos meados do século XX, na Alemanha, trata-se de já se ter em mãos, ou se estar completando, as fórmulas da conservação desse princípio construídas com as variáveis que formalizam tudo o que, nesse ínterim, se juntou como aparentemente contrário a ele – como já observamos acima.
         Ora, para visualizar o que se joga assim, é preciso notar que o dado mais geral, a unidade de composição dessa filosofia do governo, é aquilo que Foucault está designando de um modo bem original, como o capitalismo, isto é, o mercado.
         Habitualmente quando se trata do objeto da Economia política nascente, se elege o homo oeconomicus, ou se fala da unidade feita abstrata do trabalho, ou ainda, como o Foucault de As palavras e as coisas, conceitua-se a produção. Aqui, ele tangencia esses aspectos, mas não os institui como objeto. Poderíamos também supor que produção e mercado são na verdade o mesmo, mas creio que uma observação atenta iria permitir notar que pensar assim já é ter um certo encaminhamento nada ortodoxo para interpretar o papel histórico-epistêmico de Marx. Pois, uma coisa é, como de hábito, supor que Marx conceituou a produção para, através disso, chegar à sociedade e ao proletariado, um certo modo de reverter o capitalismo; o que Foucault está desenvolvendo no Curso é a inclusão de Marx na série dos conceituadores do Estado capitalista.
         Isso nos faz inevitavelmente lembrar Jameson – especialmente o artigo O pós-modernismo e o mercado. A démarche é simétrica à de Foucault, mas com um intuito diverso. Jameson está igualando deliberadamente o que seria o conceito marxista de produção ao conceito contemporâneo, que só o “capitalismo tardio” permitiu liberar, de Mercado – um análogo de produtividade, a inescapável racionalidade do fazer que todos perseguem como um atributo de sua humanidade, em vez do conceito clássico de produção como geração de coisas com valor de troca destinando-se à extração de lucro.
          Então, de um ponto de vista marxista, é preciso trazer a produtividade-racionalidade para o âmbito da crítica social, o que de certo modo é facilitado pela contingência de que o modo de produção do capitalismo tardio está mediado pela indústria cultural. Basta juntar a produtividade-racionalidade-mercado e a objetividade conceitual do marxismo assim adaptado, para se ter um parâmetro válido da ciência social atual, na concepção de Jameson. Isto é, algo que pode se justificar como furtando-se à mera ideologia e interpondo crítica autêntica ancorada em verdadeiros instrumentos analíticos – a produtividade não é o que não se quer, é o que mais se almeja, desde que depurada da distorção de classes constitutiva do modo de produção capitalista, que no entanto foi o que historicamente introduziu a produtividade como algo intrínseco ao modo, não apenas presente intematizado nele.
        A ciência social atual seria instrumentada para conceituar o aparato que distorce a racionalidade em função do capitalismo, e a novidade aqui é que nesse estágio tardio ("late") do capitalismo, a distorção é midiatizada, toda indústria é cultural.
        Mas isso, em Jameson, é ainda marxismo, ou seja, nunca se chega a extrapolar aquela reserva que assinalei quanto ao problema identitário. Ele continua preservando a questão social no parâmetro das classes, e quanto à subalternidade, enquanto problema ela não se espraia nunca para a psicologia.
        Quando não há como contornar essa derivação, tratando-se da esquizofrenia da arte pós-moderna por exemplo, ela não é explicada desde o inconsciente subjetivo, mas se explica pela própria indústria cultural no estágio tardio do capitalismo. O objetivo manifesto de Jameson, como tematizado num texto atribuído a ele que colhi na Internet, seria preservar pelo marxismo uma unidade metodológica às ciências humanas. Assim, esse epíteto de cultural para a indústria é irônico. Significa a substituição, o deslocamento de toda cultura pela propaganda ou mercatorização do produto que antes era o cultural.
        Contudo, se Foucault também está igualando esses dois conceitos que historicamente não são um único, a produção e o mercado, o que ele está de certo modo procedendo é, inversamente à Jameson, uma crítica ao marxismo. Em Foucault e Jameson, a meu ver, o importante é notar que algo se tornou realmente incontornável, a saber, a teorização sociológica de Max Weber.
         Se Marx pensou estruturalmente a produção, o que restou como o resíduo problemático da teoria da ideologia atua sintomaticamente esse nexo de produção e racionalidade que Weber atacou frontalmente como o cerne do Estado capitalista – ou da questão do Estado numa sociedade capitalista.
        Mas, se “mercado” é o conceito mais atual que opera essa junção de produção e racionalidade, o que Foucault efetiva conceitualmente é um salto de nível em relação ao próprio Weber – uma vez que Foucault qualifica a racionalidade, a historiciza enquanto algo que não atua no vazio ou no abstrato, mas discursivamente e estritamente como ciência, se é o caso da modernidade. A trajetória do liberalismo ao neoliberalismo – que na verdade são um mesmo princípio moderno-ocidental de governamentalidade – parece-me estar sendo descrita no Curso, como de algo que ainda podia ser visto apenas como produção ao que não somente Foucault e Jameson designam “mercado”, mas que se tornou pensável dessa forma, senão terminologicamente sancionada assim, desde o limiar weberiano da teoria.
            Ou seja, o que atuou como princípio, o que se fez discurso da reserva de ação do governo em função do Saber da ciência da economia, foi sempre uma teoria cujo objeto é o capitalismo. Se, por exemplo, Marx foi o crítico do capitalismo, essa crítica só pode ser conceitualmente forjada a partir de uma interpretação do papel do Estado. Assim, conforme Foucault, não há teoria econômica que não seja ao mesmo tempo uma teoria do papel do Estado nessa acepção fundamental, uma vez que a economia tornou-se – como notou Althusser – não mais simbolicamente deslocável como a instância referencial da articulação social.
            Mas, em vez de supor que ela sempre o tivesse sido - por aí o que antes atuava “como” se fosse o que sabemos que só ela é, era o que resultava do deslocamento possível pelo modo de produção enquanto não capitalista, como em Marx e Althusser - Foucault institui essa centralidade da economia somente em função do liberalismo, cuja emergência está relacionada à autonomia do mercado devido ao grau de sua expansão na modernidade. Mas o que essa centralidade da economia facultou, conforme ele, foi a universalização da racionalidade governamental, desde o cenário europeu à ambientação do mundo inteiro, se não de fato, pelo menos no pensamento que desde aí se tornou expresso na cultura.
          A Economia política nasce como produtora de verdade num contexto em que o capitalismo, esse mercado nesse grau de expansão, se tem como o conjunto de práticas mais objetivo e natural que se possa conceber – ou seja, como aquilo que vigora no lugar dos irracionais sistemas do passado, substitutivamente a eles. O regime da verdade pela verdade, ou objetividade, é o que funciona como inconsciente – ou inteligibilidade – de todo o cenário liberal, comunicando-se desde a autonomia das ciências, à centralidade do saber em cada ramo de atuação dessa autonomia e consequentemente ao recalcamento de quaisquer outros modos de discursividade nesse ramo, até a governamentalidade e a produção de subjetividade.
         Mas isso não deixa de ser o que Weber já havia de certo modo exposto – se bem que, como vimos, ele atrelou a racionalidade em geral ao processo capitalístico, sem se deter na conceituação do Saber. Somente, Foucault tem como assinalar o lugar de Weber – o por que isso não pode ter sido expresso antes. Não é que antes, ao longo do século XIX, havia ainda privilégios ou obstáculos ao livre jogo da razão a ponto de não se tornar explícito o nexo de cientificidade e modernidade. Mas se esse é o todo do discurso positivista, esse nexo era ainda amplo demais. Ele abrangia o ser do homem e o da sociedade, mais o sentido da história.
           O capitalismo e o governo liberal se internacionaliza, é certo, nessa época, grosso modo, positivista. Mas o que Weber conceituou, no panorama já “século XX”, foi a especificidade pela qual isso funciona – justamente quando não mais se requer um sentido total para a história e a sociedade enquanto humanas, por aí o papel da burocracia. Ora, é isso mesmo o que produz o salto do discurso liberal ao neoliberal. O capitalismo, para este, não era “a” racionalidade humana historicamente consubstanciada, por um lado, nem dizer que ele era reservava-se a uma indiferença para com o aspecto conflitivo como sua consequência. O capitalismo é um modo específico de operar recursos – e é por isso que por racionalidade se entende agora algo mais objetivo, mais pervasivo, mais natural. Justamente, quando não se pode mais decidir quanto aos fins.
          A produtividade substitui a “produção”, e o mercado é somente do que se pode tratar desde que o objeto seja o capitalismo – não mais se pode, daí, tratar diretamente a sociedade. Mas isso corresponde ao modo mesmo pelo qual a sociedade vai se tornando sempre mais uma “função” da produtividade. O objeto se reduz desde o ponto de vista da cientificidade, o que implica que ele está se reduzindo do mesmo modo na história, dada a implicação ela mesma histórica da cientificidade na modernidade.
          Nesse ponto do Curso, Foucault dirige o que aos comentadores pareceu uma crítica a Deleuze – interpretação que me parece válida. Em todo caso, a crítica é a teorizações – que supomos como as do Anti-Édipo – que se disseram materialistas-marxistas, mas na verdade, segundo Focault pode ser demonstrado que eram weberianas.
          Para Foucault isso é estruturalmente condicionado. No século XX já seria impossível tratar o capitalismo sem implicar o modo pelo qual ele interfere de um modo absolutamente paradoxal com o social, reduzindo-o, isto é, sem tratá-lo como racionalidade intrínseca, ou estritamente produtividade. O que seria comum ao cenário do Anti-Édipo, onde se mostra que ao mesmo tempo que lhe é constitutiva a desterritorialização dos códigos, desterritorialização do socialmente tradicional, o que isso acarreta é a funcionalização capitalista de todas as formas de relação no âmbito que antes era o social. A posição materialista, inversamente, pensaria que o capitalismo mobiliza positivamente os códigos – a ideologia e o Estado – e que ele tem absoluta necessidade deles.
            Mas essa funcionalização não é uma mobilização, inversamente, é um efeito de resto, por assim expressar: desde que não interessa ao capital, não é feito, máxima que corresponde à governamentalidade (neo)liberal. Pois, tudo o que restou factível é função do capital. Sabemos que o Anti-Édipo não se limitou a uma teorização do capitalismo sem fornecer também uma do inconsciente – assim, há reterritorialização, Édipo, etc. Mas a crítica de Foucault tanto mais incide assim. Pois as reterritorializações artificiais do capitalismo são ainda esse efeito de resto, e quanto ao Édipo, conceituado numa imbricação ao Estado capitalista, só tornaria a subjetividade uma função da teoria social. Mas, como “atravessar” os níveis – economia, desejo, sociedade?
           O inconsciente geopolítico, que tenho conceituado como meu equacionamento da problemática sócio-histórica e cultural epistemológica,  interfere precisamente no ponto desse impasse pós-estruturalista. Insere o capitalismo como assimetria internacional do capital, processo de formação de centro (Europa) e margens (terceiro mundo), ou de articulação do dependentismo na margem. Mas enquanto processo ele é uma formação egológica, uma narrativização - portanto paralogia - da história como ciência que surgiu inversamente, como liberação real da visibilidade da margem.
         O ego dessa "história" narrativizada desde o positivismo, é o discurso do centro como seu sujeito, de modo que toda a história se reduz à cientificização-racionalização-industrialização do mundo, dado como processo gerado exclusivamente pelo ocidente como seu protagonista. Assim podemos esperar o cientificismo, tanto como a espantosa abstração do açambarcamento da margem nas análises do capitalismo num parâmetro intrínseco como tanto em Marx quanto em Weber, como efeitos dessa distoção egológica, visto que o inconsciente nele mesmo só põe a alteridade do signo, como em Derrida, não uma natureza contrapositiva do sujeito centrado-identitário produzido no ocidente moderno.
          São esses, o cientificismo e a abstração do constitutivo da  margem, efeitos do discurso do ego geopolítico ocidental, e podemos ler a história recente como efeitos da mesma distorção geo-egológica, mas eles não se limitam a tais oclusões censórias, avançando a um desejo brutal de dominação sobre a margem. Não devemos supor que o genocídio das ditaduras americano-latinas dos sixties movido pelo intervencionismo nortea-mericano, e o movido pelos governos europeus contra os movimentos de descolonização afro-asiática, sejam fortuitos.  A propósito é necessário observar que esse discurso  geoegológoico não tem um início para si, pelo contrário, ele começa por se instalar teleologicamente como no positivismo.
         A origem precisa ser recuada, deslocada pela "natureza" mesma do homem como racionalidade,  que não estava porém senão para revelar-se evolutivamente. O civilizado continua sendo o oposto e ao mesmo tempo o telos, do primitivo. A margem reduzida a primitivo, é o resultado desse discurso geopolítico, e na atualidade, onde o desenvolvimentismo está inviabilizado pela limitação ecológica, então se mantém essa idealização do primitivo na margem como seu "autêntico", na verdade inteiramente fabricado pela mídia como mentalidade facista do que "deve" ser a margem conformada ao seu papel subalterno pela coerção da produtividade-racionalidade cujo sujeito continua sendo o centro.
         É interessante que quando se pode detectar no Brasil a mentalidade subserviente ao capital norte-americano, após os acontecimentos traumáticos do golpe e da resistência, ocorre o desvio discursivo que foi notado por profissionais de educação na área de ensino de artes plásticas, a disputa pelo "ter feito primeiro", entre aqueles que se jactavam de estar implementando programas totalmente nacionais nas escolas. Mas esses programas, quando examinados, mostravam-se cópias de programas franceses, ou estereótipos do que se idealizava como folclore local sem atentar para o fato de que seus critérios eram oitoscentistas, discordantes com o que já se sabe sobre a percepção, etc.
         Retornando ao que estávamos observando quanto à Foucault, também para Jameson, a arte que circula como pós-moderna, isto é, em função da indústria cultural, não é ideológica no sentido que um Adorno poderia explicitar. Ela não tem um conteúdo que implica sancionar seja o que for que correspondesse ao comportamento condizente com a produção. Ela não tem conteúdo. Reifica estritamente a produção, é nada mais que produto, o que implica esquizofrenização dessa arte, pois os processos da produção não tem nada a ver com humanidade ou sociedade ou comunicação de mensagens com sentido subjetivo ou culturalmente referenciáveis em termos de tradição, são intrínsecos à produtividade, a si mesmos, como já notamos.
         Baudrillard, ao examinar como veio a existir um “sistema dos objetos” que extrapola a mera funcionalidade da coisa para abranger todo o simbólico que a mercadoria pode portar, também não está supondo isso como uma “carga” evocativa, emotiva, apelativa, etc., que iria então veicular uma ideologia capitalista, mas estritamente como uma linguagem que, desde a produção, invade a consumação para mercatorizá-la – por aí, para ele, o capitalismo tornou-se uma “lógica social da consumação”, não mais podendo ser definido no parâmetro da “produção”.
        Os atributos de “claro” ou “íntimo” para um ambiente de móveis planejados não significam qualidades das coisas, mas o que estamos comprando desde que fabricado com elas, como sua marca, seu detalhe de ser - enquanto mercadoria elas são portadoras da subjetividade. A subjetivação tradicional teria sido desconstruída, no sentido da plenitude de um ser que poderia ainda barganhar-se – como nos românticos pactos com o diabo, que conforme Baudrillard seriam impossíveis na atualidade.
         A subjetividade funcionalizada da consumação é estritamente relativa à mercatorização do simbólico – interpretação que, a meu ver, corresponde bem à indústria cultural de Jameson, mas com a reserva de que para Jameson a subjetividade foi desinvestida como possivelmente expressável na arte, enquanto para Baudrillard a subjetividade se tornou fabricada-midiatizada e assim pensável o processo identitário desde a função do capital. Mas aqui Baudrillard é de fato ambíguo, pois se inversamente a Jameson não há o vazio da subjetividade na sociedade de consumação, ou esquizofrenia, é porque a subjetividade deixou de ser o atribuível desde o conceituável a partir dos indivíduos eles mesmos.
           Ora, tanto Baudrillard quanto Jameson operam, quanto ao horizonte da sanidade contra que estão contranstando a patologia da lógica do capitalismo tardio, com o conceito psicanalítico de sujeito não psicológico, o sujeito sexuado. Assim, o que Baudrillard afirma é que a subjetividade real, do sujeito sexuado, se desloca pela subjetividade factícia do sistema dos objetos que subsumiram toda atribuição de valor.. Assim, nisso ele está de fato se contrapondo a Foucault, pois não é a sexualidade que está sendo investida por algo mais pervasivo ainda que o capitalismo, e que seria a modernidade onde o capitalismo preenche o locus do poder, mas esse não é o único, havendo ainda o do saber. No entanto, nessa linha de argumentação não se poderia hoje seguir Baudrillard. Ele afirma assim que a estrutura da subjetividade capitalista (dos objetos consumíveis), implica já saber que elas dessexualizam, e assim, não poderia jamais haver robô sexuado. Nó sabemos, contudo, que após tais afirmações o robô sexuado se tornou personagem cinematográfico, de canção popular, etc.
         O que me parece essencial na viragem que Weber interpõe na teoria social enquanto algo que não pode deixar de tematizar o capitalismo – e vice-versa, quando se trata do capitalismo, não se pode deixar de tematizar como ele interpõe a disponibilização do social – é então isso que atravessa a sociologia da burocracia como seu nó problemático. Como Weber equacionou esse hiato intransponível, que ele mesmo deve ter previsto, entre a racionalidade burocrática empresarial e estatal, hiato que tanto mais existe necessariamente quanto ele é efetuado pelo fato de tratar-se em todo caso de racionalidade no sentido do que é intrínseco ao capitalismo? Se o que Foucault efetua no Curso, é a transposição de toda teoria social contemporânea ao limiar weberiano, agora seria oportuno examinar os efeitos dessa ação.


                                                                                                                          Livro 2
          5 - 
           

















             O estatuto da empresa em Weber está num lugar estruturalmente homólogo ao da sociedade em Hegel, o que acarreta, como já notamos, a transposição teórica do universal ao que Weber designou o “ideal” ou típico (“tipo”) – estritamente a modelização sociológica, instrumento teórico em vez de imediatamente o ser.
          Na sociologia compreensiva, que derivou depois para Husserl com Alfred Schutz, isso foi interpretado como a construção conceitual do que este designou “homúnculo”, consequência bem criticável, como mostrou Robert Gorman, que o conceito weberiano conjura exemplarmente por não atrelar o ideal-tipo à consciência. Nesse estudo, Gorman estabelece o que me parece a observação mais aplicável como a limitação da fenomenologia, o que ele exemplifica tanto mais pela inadequação dessa aplicação na sociologia: trata-se de uma “visão dual”, por que se o resultado deve ser a mais extrema objetividade, não se justifica o viés subjetivo que a fenomenologia adota de um modo tão antipático àqueles que, para chegar ao mesmo resultado, começam pelo objeto assim como lhes é acessível.

          É nisso que reside o interesse em salientar o desacordo de Weber com Dilthey. O “compreender” em ciências do humano é científico, não mera simpatia como supunha Dilthey, por que não significa que enquanto sujeitos nós incorporamos ou realizamos os valores do outro da cultura, mas sim, apenas, por que entendemos o meio pelo qual sua ação se realiza – ou entendemos precisamente o limite da nossa capacidade de realizar ou incorporar os valores que supomos adscritos à ação. Gorman enfatizou precisamente esse aspecto, contra as leituras do compreender weberiano em termos de, respectivamente, “revivescência” ou “empatia” – ele traduz verstehen por “compreensão interpretativa”, notando que do contrário Weber seria redutível a Dilthey. 
          Isso ficará mais claro ao desenvolvermos o conceito que me parece o crucial da teorização de Weber. Habitualmente esse conceito é atribuído como o ideal-tipo. Mas vejamos em que se torna mais oportuno instalar o plano de leitura ao redor do conceito de empresa. Por esse termo, podemos entender duas coisas. Ora, numa acepção mais restrita, o sinônimo de “firma”, a unidade de produção mercadológica (coisas ou serviços) no capitalismo; ou então, mais geralmente, o sinônimo de agência, atuaçãosocialmente concertada com vistas a fins, em geral - não agenciamento no sentido deleuziano, redução epistemologicamente arbitrária de qualquer fenômeno a um só sentido conceitualmente apreensível como duplamente articulado.
          O termo empresa como estamos utilizando aqui em sentido weberiano, ou seja, como ação, atravessa assim o que deveriam ser as instâncias – formais ou materiais, conforme a opção teórica – constitutivas do conceito de sociedade.
          Aparentemente há um nexo com a noção de produção marxista, mas na realidade a empresa como agência não é essencialmente uma noção econômica, é, sim, estritamente sociológica.
Nisso não me parece que Foucault tenha apreendido bem as consequências da transposição ao plano weberiano da teoria social, que não creio haver razão para duvidar que ele realizou no Curso.
           Foucault supôs esse corte epistemológico interpretável em termos de generalização do modelo econômico a todas as instâncias da teoria social no plano heurístico, assim como a todo o senso comum a propósito de subjetividade e comportamento no plano sócio-empírico – pessoas sendo instadas, ou por elas mesmas dispostas, a pensarem suas relações interpessoais como relações empresariais, elas mesmas como empresas auto-organizadas, por exemplo. Mas, de fato, o que está em trânsito desde Weber é aquela ruptura em relação ao universal que interpõe algo que o positivismo pretendeu ter realizado, mas  o positivismo mesmo ficou na imanência do conceito hegeliano e romântico, tanto mais preteneu revertê-lo em prol do materialismo.
         Ou seja, a postulação sociológica, mas em humanities – algo que apreendemos se notarmos que, volvendo ao exemplo do dançarino da chuva e do deputado, eles podem não ter conhecimento algum da implicação sociológica dos seus atos, que tipo de estrutura de autoridade implicam, que relação de inteligibilidade com os fins subentendem; conhecem, e dão importância como algo dotado de significado, somente aos valores e ao know-how associados a esses atos. O deputado pode ser um supersticioso ou religioso, e atribuir todo o sucesso de seus pronunciamentos a Deus – isso não altera o valor sociológico do ideal-tipo da ação do legislador numa sociedade moderna como sendo racional, intrinsecamente irreligiosa.
          Assim, parece-me que Foucault sobrepôs num mesmo parâmetro explicativo o teórico e o sócio-empírico, como ambos devidos à centralidade do modelo econômico na mentalidade contemporânea em sociedades capitalistas, o que não pode evitar ser um reducionismo.
         A empresa em Weber, como em todo caso agência, é o que se pode/deve atuar socialmente, não como uma ação singular, mas como o que congrega o sentido das ações, pessoais e coletivas, desde que assim orientadas – não apenas o que seria biológica ou psicologicamente interpretável, como já enfatizamos. A empresa é então o meio pelo qual a ação é socialmente constituída, o que dota o sentido, em vez desse lugar da dotação ser a fenomenológica consciência.
          A mediação social da empresa é totalmente histórica, nesse sentido pelo que não é universal, mas localizada no tempo e no espaço, tratando-se especificamente do que certas sociedades apresentam no presente da sua existência. Por esse viés, seria mais adequado falar em “condutas”, como Gorman, e Weber libera a tipologia das condutas ou empresas como aqui designo, assim listadas por ele: racional orientada para um objetivo (Zweckrational); racional voltada para o valor (Wertrational); afetiva (Affektuell); e tradicionalista (Traditionell). Quanto ao Affektuell, alguns autores traduzem por “afectual”.
         Os tipos ideais de ação percorrem a mediação das empresas sociais – por exemplo, na sociedade moderno-ocidental impedindo que seja por tradicionalismo que se realizem pronunciamentos na tribuna da câmera dos deputados, como se tratasse de um ritual ou costume. Esses pronunciamentos tem que ser adequados aos seus fins não por quaisquer outros motivos que essa adequação ser racional. O deputado está lá por um meio ele mesmo racional – se ele representa a sociedade, é por que esta votou nele; votar é racionalmente relacionável ao resultado do voto, de um modo que dançar para chover e a chuva não o são.
        Não podemos demonstrar para qualquer um o nexo da dança e da chuva, mas podemos fazê-lo quanto ao voto. Além disso, ele pronuncia o que está realmente preconizando como o que se deve fazer, e mostrando por que isso é o que se deve nesse caso que ele esclarece bem qual é. Não está pronunciando a fórmula de um feitiço para que se realize automaticamente aquilo que ele preconiza.
O que a teoria informa de mais relevante quanto a tipos de ação é então essa oposição entre o nexo racional com o objetivo, o nexo racional com o por que de se realizar a ação, e os outros nexos. É por esse meio que entendemos a utilidade da noção de empresa na teoria.
         Ocorre que Weber não afirmou que só na sociedade moderno-ocidental temos ações cujo nexo é racional. Os quatro tipos ideais são pertinentes a todo comportamento social. Mas o que ele constituiu foi uma relação postulável – como um critério para a observação – entre as empresas historicamente efetivas de certa sociedade, e o nexo da ação que lhe é mais característico. Assim, a burocracia é algo que evidentemente não começa com o capitalismo. Historicamente, a burocracia é associada à invenção daquela escrita que Derrida chamaria logocêntrica, isto é, uma escrita estritamente representativa do seu objeto.
          Escusado lembrar que essa “escrita” normalmente é tudo o que se define por escrita – na ausência de que os povos seriam sem escrita. Aqui alguns pressupostos devem ser revistos, mesmo sem a radicalidade que essa leitura de Derrida exige. Inicialmente, aquilo que serve de parâmetro à interpretação de Derrida, a saber, que as escritas representativas que estabelecemos como originárias não se limitam a ser representativa daquele modo a que a escrita alfabética se limita. Se elas não são alfabéticas, não funcionam associando linearmente um som – ou grupamento de sons – a um sentido. Elas exibem multiplicidade de sentidos na interpretação do que chamarei os seus grifos, não são linearmente associadas, mas induzem a várias ordens de associações possíveis entre os grifos conforme suas posições.
          O que Derrida observa para essas escritas não-alfabéticas é então epistemologicamente homólogo à reserva da empresa em Weber. Nós sabemos que a burocracia na origem é um sistema palaciano de escribas, não palaciano de funcionários em geral; com os escribas sendo os que manejam a escritura com esse objetivo estrito de representar, classificar e estipular a regra de coisas e fluxos.
Não são necessariamente funcionários, além dos escribas, que organizam as coisas e fluxos que devem ser regrados, armazenados, distribuídos, etc., conforme a ordenação do palácio ou império. Isso pode vir dos povos que se congregam sob a autoridade do palácio, na forma de tributos, ou então é o que esses povos vem buscar no palácio, na forma de trocas por prestações de serviço ou por submissão, etc. O que os escribas fazem é somente organizar essas coisas para que possam ser assim armazenadas e trocadas num sistema coerente cujo correlato é a autoridade do palácio. Mas a correlação originária do sistema e da autoridade do palácio não está conhecida, ao contrário do que apregoam teóricos como Deleuze ou Pierre Clastres.
         É notável que a critica de Derrida a Levi-Strauss, na Gramatologia,  já tenha justamente isso por móvel. Strauss culpa a escrita pelo advento da exploração estatal, pois seria o instrumento dos escribas palacianos, tecendo por esse meio, o elogio do selvagem que a desconhece. Mas na verdade nada na escrita o implica. Além disso, esse conceito de escrita como unicamente representativo já subentende aquele critério do primitivo que vimos apenas discursivo, inerente à abstração da margem na idealização de um sujeito de saber puramente ocidental. Não há povo sem escrita, segundo Derrida, enquanto não existe alguém, excetuando-se recém-nascidos, que não seja iniciado em algum sistema de signos.
       Nada  implica que saibamos tudo sobre a empresa nas formações originárias dos sistemas palacianos, num parâmetro weberiano, assim como Derrida notou que o fato de haver escribas não implica que saibamos tudo sobre aquelas escritas a princípio não alfabéticas – apenas que elas podem ser utilizada assim como se utiliza a escrita alfabética, mas não que pode ser utilizada assim. Na verdade, como acentuei não poderíamos nem estabelecer qual a via da correlação entre a burocracia e a autoridade do palácio para épocas muito recuadas – por exemplo, que o poder burocrático decorre da autoridade, podendo ser o inverso, a burocracia ser o acontecimento fundamental, e então por autoridade, não teríamos o que normalmente se pensa por esse termo, a autoridade única como a de um déspota, uma vez que esse senso comum é associável ao que sabemos de realidades sociais estabelecidas mais tarde ou alhures.
         Com certeza todo o parâmetro século XIX da atribuição dessa correlação, tipificada por Morgan, está errado, pelo que se pode verificar da tentativa de sua aplicação aos grandes aglomerados sociais da América.
          O Anti-Édipo guattari-deleuziano, a meu ver também erra quanto a isso. Ele supõe que temos um código social “bárbaro” quando há esse sistema palaciano, que então significa por si só a existência do Estado definido pela existência do déspota. Por codificação dos fluxos de desejo, define, grosso modo, o que é feito das práticas sociais, o que chama a “produção”. Elas recebem significados simbólicos, são identificadas como, digamos, instituições sociais, o que ele conceitua como “memória social” (“socius”). Então, ele vai definir o Estado como decorrendo do código “bárbaro” que implica um desejo capaz de adorar um déspota, isto é, essencialmente identificar uma figura única, hierárquica-ontologicamente superior a toda a base social de figuras equivalentes. Isso é impossível na codificação selvagem, onde, portanto, por definição não há Estado.
         Mas tudo o que podemos descrever para épocas recuadas, quando há burocracia ou uso representativo-administrativo-organizacional de escrita, é essa sobreposição: junto a outros tópicos – como mitos, onde aquilo de que se trata são deuses, não imediatamente instituições políticas; ou como costumes observados para papéis sociais em termos de casamento, criação de filhos, etc. – temos que o ajuste racional que sempre se deveria esperar de ações em nível empírico, por que, afinal, para conseguir certos efeitos vitalmente importantes, esse nível é fundamental, se complexificou, ou simplificou quem sabe, se por exemplo, a condição fosse a super-abundância em vez da escassez, a esse ponto de precipitação de um sistema burocrático.
         O que Weber conceitua, desde aí até o tema do nascimento do capitalismo, é a definição do que temos que explicar: o processo pelo qual essa sobreposição foi anulada, quando o funcionamento burocrático foi totalmente depurado à sua essência como pura racionalidade, isto é, o processo pelo qual toda sobreposição da burocracia por algo além dela mesma que a fantasiava como outra coisa (império religioso, autoridade carismática, etc.)  foi anulada pelo nexo racional das ações tornado universal na sociedade.
        Ou seja, Weber relaciona a empresa como mediação sociológica em geral, à tarefa de explicar o surgimento da empresa na acepção restrita da firma enquanto mediação sociológica moderno-ocidental em particular.
         Ora, de algum modo, é isso que Guattari-Deleuze procuram explicar por meio da mutação edipiana da transcendência despótica. Em vez de um único déspota que o desejo deve ser capaz de adorar-identificar, no Estado civilizado (moderno-capitalístico) trata-se de produzir um desejo capaz de identificar a todos os sujeitos como sujeitos únicos ou indivíduos a título próprio. A identidade torna-se então a função mais geral do desejo, e isso é dado como a normalidade médico-psicanalítica e psicológica.
         Essa identidade familiarista é tão importante por que esse sujeito é aquele que deve responder pela racionalidade da ação, nada mais. Ou seja, precisamente no parâmetro weberiano, sendo o capitalismo a sociedade onde a mediação não é pela firma sem que o ideal-tipo da ação racional tenha se universalizado como característica da empresa nos dois sentidos, geral e particular, socialmente sancionada.
          Para viabilizar o inconsciente edipiano-familiarista-identitário, conforme o Anti-Édipo, os códigos que seriam expansões do sujeito para mais do que essa identidade-funcionalidade estrita, devem ser destruídos pelo capitalismo, e isso é feito de modo objetivo, já que a entrada do capitalismo num meio social ante-moderno tem que forçar o ultrapassamento das formas tradicionais desse meio.     
         Mas, na origem, não podemos definir se era o “tradicional” estritamente a que se devia todo Estado antigo, ou o “valor” ou o “afetivo” - portanto, não sabemos justamente se podemos defini-lo na origem como “despótico”, e os autores do  Anti-Édipo o definem assim arbitrariamente num parâmetro sistêmico, como forma “eterna”, isto é, estrutural. Não houve um início histórico do Estado, para eles o Estado sempre é a forma que corresponde às suas meras atualizações históricas.
         Mas isso não chega ao que seria realmente proveitoso, a saber, mostrar que assim como todas as sociedades tem escrita, e são históricas, todas tem Estado enquanto corpo de regulações em nível social das ações. Ao invés, o Anti-Édipo pensa haver formas sociais como sistemas diversos, de sociedades com ou sem Estado, e todas as com Estado sendo despóticas ou edipianas.
        Emilio Willems desenvolve bem a crítica ao que no Anti-Édipo vemos como junção de critérios anteriormente correntes na antropologia.
         Não há assim sentido na designação que já era durkheimniana de sociedade segmentar como primitiva, pois do contrário teríamos que saber de que ela se segmentariza, sendo dada como originariamente segmentar; também não há sociedade sem corpo regulativo de leis que não são pensadas pelos seus membros como natureza privada deles mesmos, tanto que essa regulação é geralmente estudada como instrumentação punitiva à infração das leis, portanto não há sociedade sem Estado. Se a extratificação sociel é grandemente variável, e podemos escalonar certos tipos constantes, das sociedades igualitárias (tribais) às que apresentam funções separadas de dirigentes até as muito complexificadas como as ocidentalizadas, isso não permite deduzir que existam diminuições qualitativas de umas às outras.
         Nisso, o Anti-Édipo não pode evitar o que Foucault soube mostrar como o que, ao mesmo tempo, é o ponto de mutação na teoria social e do Estado, instituído por Weber, e o que realmente era o prejuízo das ciências humanas do século positivista. Ou seja, atrelar o Estado a uma positividade que devemos construir desde a sociedade suposta como um todo em si ("socius"). Aqui esclareço mais minuciosamente em que o ideal-tipo não acarreta essa condição em Weber, e para isso o Curso foucaultiano se mostra bem oportuno.
         Como notamos, o ideal-tipo como mediação de suas empresas é o que as sociedades apresentam, mas não é o que as define positivamente. Não temos um conceito de “sociedade” - como o que é investido desde a consciência dos sujeitos, ou como “socius”, ou o que se expressa no simbólico, ou um conjunto de instâncias corporativas, etc. Por outro lado, o Curso não só fala da ambiguidade que o neoliberalismo alemão manifesta quanto a certos aspectos – se bem que muito influenciado por Husserl, em todo caso já no ambiente weberiano da teoria social – como não se furta a ela.
         Ora Foucault fala do neoliberalismo como tendo sido uma teorização econômica cuja novidade foi ter se dispensado de fornecer uma teoria do Estado, ora como algo que surgiu de um contexto prático, que foi o de produzir um Estado no pós-guerra alemão, tratando-se então no Curso de examinar o aspecto teórico-discursivo pelo qual os intelectuais historicamente envolvidos nessa tarefa dela se desincumbiram, ou seja, como eles pensaram o Estado, o que inevitavelmente significa teorizá-lo. Ora trata o material histórico por um corte fundamental entre duas doutrinas de governo, o pacto social e o liberalismo que se desdobra depois numa integração vitoriosa sobre o que se lhe opôs, na forma do neoliberalismo; ora trata ambos, liberalismo e neoliberalismo, como doutrinas incompatíveis a propósito do papel do Estado. Mas por outro lado, pareceria exequível amenizar essa crítica de ambiguidade, por que aquilo que o neoliberalismo procedeu não foi apenas colocar no lugar da troca, a concorrência; e sim deslocar do Estado o que o liberalismo lhe prescrevia ainda como sua autonomia jurídica, isso para que funcionasse apenas conforme o interesse econômico. Não obstante, a ambiguidade se mostra mais aguda justamente aqui.
       Foucault destacou os quatro obstáculos que o neoliberalismo identificou como sendo aquilo que precisava derrubar para se impor, todos atribuíveis ao que seria da alçada jurídica do Estado. Protecionismo, como providência contra a concorrência. Socialismo, num sentido estrategicamente polissêmico, pelo que temos apenas a integração do proletariado em algum tipo de política social, mas se isso significa autonomia soviética ou dominação sindicalista, não se precisa em princípio definir, já que o Estado pode se decidir por qualquer um deles. Burocracia de Estado, que nesse contexto significa estritamente “dirigismo”. E keynesianismo, que Foucault não esclarece bem o que seja, mas que sabemos tratar-se de liberação governamental de créditos e de assistência social com base no pressuposto um tanto heterodoxo de que a injeção de dinheiro reverte em incremento da economia, ou seja, empregos e impostos.
           No entanto, o programa positivo desss neoliberais ou "ordoliberais", implica ação anti-monopolista, claramente "intervencionismo" que obviamente só pode ser estatal. Isso por que, ao que parece tanto na Europa quanto nos EUA, em todo caso a imagem neoliberal alemã de mercado como mecanismo auto-regulador de preços e ambiente da livre-concorrência, corresponde a um cenário de empresas de porte limitado, o que não se tornou a realidade do “neoliberalismo” que conhecemos como a doutrina de Hayeck e Friedman típica do mundo globalizado desde os anos oitenta-noventa. Não obstante, Foucault os cita, junto aos ordoliberais alemães e demais referências europeias, no seu mapeamento. Ora, a efetividade histórica que corresponde a essa realidade neoliberal é do conflito Norte-Sul (internacionalização da economia) que só podemos entender desde uma centralidade do Estado que se torna típica das economias de margens – o que vai então ser muito interessante confrontar nas fontes da sua teorização, com o Curso foucaultiano.
           Mas que só é típica na margem, por ser mediada desde uma atuação estatal do Centro. Quanto a isso, a observação de Guattari-Deleuze no Mille Plateaux, pelo que o capitalismo exporta regimes políticos para o mundo inteiro conforme seus interesses, desde as nações centrais, é bem acurada – no entanto, o papel do Estado nesses trechos já não se conceitua muito claramente, e a visibilidade conceitual se torna mais restrita ao tópico da autoridade, por onde se desdobra interessante oposição entre as noções de totalitarismo e autoritarismo, o primeiro sendo institucionalizado, o segundo podendo vigorar numa institucionalização formalmente democrática, desde que o capitalismo o implica mesmo no Centro.
           Ora, a autoridade pode ser estruturada como Foucault a poderia supor desde o neoliberalismo alemão, não definida pela positividade do Estado, mas sim pela estruturação do mercado, ou o oposto. É o que está em jogo na grande polêmica sócio-econômica do século XX, que geralmente se apresenta em torno da oposição de liberalismo e estatismo. Contudo, essa polêmica é o que se poderia dispor como o locus ambíguo – o que varia quanto a posições teóricas não sendo uma decisão em torno de duas doutrinas nitidamente contrapostas, mas sim, já envolvendo que é que se deve atribuir a cada uma.
           Além disso, quando Foucault analisa o discurso anti-liberal dos neoliberais, ele diz que para estes o liberalismo foi uma doutrina do interesse inglês, portanto, não conveniente fora desse contexto. Como os quatro obstáculos não surgem historicamente unidos num só cenário, a originalidade dos neoliberais alemães teria sido agregá-los numa entre-implicação quando nos cenários históricos onde podem ser vistos geralmente estão dados como uns antagônicos aos outros. O protecionismo não seria por essa ordem de ideias, o que iríamos pressupor da doutrina inglesa – mas historicamente a Inglaterra aplicou o protecionismo, justamente, contra a concorrência alemã. Aparentemente Foucault acreditou demasiadamente no discurso neoliberal, quando sua prática pode não ser diretamente infletida assim.
           Não obstante, é interessante, quanto àquele confronto, notar que Organski, referenciado por Chacon no estudo sistêmico do estatismo brasileiro, classificou o nazismo como uma variante do estado de bem estar social – o que decorreria como aquele cinismo que Foucault atribuiu a certas aplicações sociais do neoliberalismo, se não correspondesse ao que o próprio Foucault estabeleceu como o ponto de apoio rigoroso da argumentação neoliberal: que dado qualquer dos quatro tópicos numa política governamental, teríamos implicado os outros três, ainda que isso não seja esperado quando se aplica algum deles.
           Aparentemente, o que Foucault está operando é a oposição tipicamente neoliberal entre o Estado e a política governamental. Mas não me parece ter sido resolvida, só por isso, o que seria a dificuldade do próprio neoliberalismo. Foucault se ancora no inessencial. Se o Estado não é algo que nós devemos primeiro conceituar, para depois ver como é que se aplica ou desvia nas efetividades históricas, mas, como historiadores, apenas depreender como é conceituado em cada efetividade histórica em que um conceito de Estado é o caso na linguagem, isso está epistemicamente – no sentido do a priori foucaultiano – em concordância com essa realidade em que o neoliberalismo do mesmo modo neutraliza uma qualquer essencialidade estatal.
         Mas se o neoliberalismo opõe política governamental a algo que nega essencial, não é por que ele pensa que isso que nega nunca existiu – inversamente, ele prega que houve Estado ou políticas que se discriminaram como presença do Estado. Atrelar assim essas políticas ao equívoco passado da essência, porém, é o que não está senão de acordo com certos pressupostos neoliberais – em vez de ser o que resume o a priori. Inversamente, é a implicatura geopolítica que a análise sistêmica do neoliberalismo precisa desconhecer para sustentar um discurso que não deixou de ser panfletário, ao invés de rigoroso. Foucault parece não ter escapado dessa ilusão – por que o desconhecer nesse caso não elide o estar condicionado por.
            Na leitura do método weberiano pelo viés da empresa, temos a supressão da objeção que a fenomenologia, manifestamente com Schutz, apresentou como a insuficiência desse método em discriminar o significado subjetivo da ação, que no entanto, seria o que Weber teria se proposto como meta de uma teoria social interessada em romper com o positivismo – não por que este se propõe eliminar a metafísica em prol da objetividade da base empírica como princípio de cientificidade, mas por que teria se limitado a uma objetividade natural, quando as ciências humanas são relativas a sujeitos que valoram suas ações e a elas atribuem significado. A teoria do significado é algo sumamente complexa – abrange várias áreas em humanities, podendo assim ser tematizada sob tão variados aspectos que uma crítica dessa jaez precisaria por começar a restringir o seu escopo: que está entendendo como o significado que não foi fornecido, não obstante ter sido tematizado, a seu ver?
           Ora, o que se poderia colocar como o ultrapassamento epistemológico do positivismo na teoria social de Weber, não é a subjetivação do objeto, mas inicialmente a refutação do seu critério anti-metafísico por que aquilo que o positivismo entendeu como empírico ou objetivo, na verdade estava eivado de subjetividade e generalização indevida, com base em conceitos indemonstráveis. É o que afirmamos quando notamos que desde Weber já não se julga quanto a fins – trata-se apenas de explicitar o modo como os fins são articulados com seus meios, em termos da ação. O positivismo, inversamente, era um permanente tribunal dos objetivos das ações, daí haurindo a sua posição obviamente preconceituosa pela qual a industrialização era um objetivo em si mesma, a racionalidade humana em si mesma, não apenas enquanto ação produtora, etc.
          Quanto ao objetivo estritamente da teoria social, definido por Weber como explicitar o comportamento humano “quando e até onde o indivíduo lhe atribui um significado subjetivo”, é essa restrição do “quanto e até onde” que me parece importante – porquanto de outro modo a definição seria trivial, por indivíduo em teoria social não podendo-se ter senão um sujeito de valores significados. Na verdade, o que está sendo definido aí é a ação enquanto social - “humana” no sentido da restrição epistemológica de que se trata. Tanto que Gorman nota que o próprio Shutz atribuiu a Weber uma “preocupação” que chegaria a ser “quase obsessiva de evitar as ambiguidades do pensamento psicológico não verificável empiricamente”. No entanto, em vez disso ter sido causa de maiores ambiguidades ainda, desta feita na teoria social, é a reserva observacional do método weberiano que me parece desde o princípio ter que ser explicitada.
           Assim, o que Shutz produz é um deslocamento sistêmico daquele aspecto que inversamente os sociólogos do terceiro mundo, ou críticos sociais do capitalismo, tanto encontram de oportuno em Weber. Ele desloca para a questão do significado o que em Weber é a conjunção do tipo-ideal à tipologia da autoridade, pelo que o objeto da teoria social em Weber torna-se a descrição do funcionamento social, em vez da constituição do elo societário por via da subjetividade ou consciência que é o que a fenomenologia almeja.
           A questão para Weber nunca foi a de como compreendemos uma ordem como tal, quanto ao significado nela contido, de modo que então ele não a teria resolvido a contento. Mas, sim de que é que a ordem envolve na requisição do nosso comportamento: adoração àquele que ordena; apenas compreensão de que a pessoa que ordena sabe o que é preciso quanto ao que estamos atuando; e quanto a esse saber, essa pessoa ordena o que precisamos fazer na prática, se queremos certo resultado; ou o que devemos fazer por que os antepassados assim esperam de nós no mundo dos espíritos, ou ainda, por que esse é o costume e com isso estaremos cumprindo nosso dever?
         As formas de autoridade que requisitam modos correlatos de comportamento, significados que subjetivamente atribuímos ao nosso cumprir da ação requerida pela autoridade, instituem focos de ordenação na sociedade, isto é, inicialmente autoridade é Poder – nessa definição, aptidão a lograr que outros façam o que ordenamos. A sociedade é então esse meio de empresas viabilizadas por tipos de ação que tem, ou podem ter, por correlato, tipos de exercício de autoridade. Não tem um ser por si, mas decorre historicamente, e localizadamente, das formas combinadas de empresa, ação de cada um, autoridade.
        Mas o poder se torna dominação naquele ponto crítico em que o equilíbrio sistêmico se rompe, precipitando-se o conflito social que qualifica de certo modo os movimentos sociais que se propagam daqueles focos de formas combinadas. Isso me parece permitir que não obstante a definição formal que Weber forneceu do Poder, o ponto crítico da autoridade entre poder e dominação está na precipitação do derivado da autoridade, a empresa – desde algo socialmente partilhado, sendo então o Poder igualmente algo atribuído à sociedade ainda que isso dependa da discriminação de papeis; a algo que a autoridade retém, sendo então a dominação o que permite alguém ou algum grupo dispor do que deriva da autoridade na sua irredutibilidade ao conjunto da sociedade.
         Esse ponto crítico não está dado a priori. Em todo caso, a tarefa da ciência social não se resume na reconstituição dos conteúdos pensados pelos sujeitos, uma vez que não tenha obrigatoriamente que ter começado por descrever como é que sujeitos pensam conteúdos. Por que se fosse somente isso, o parâmetro funcionalista sistêmico não seria a sério nada mais que uma teoria da ideologia poderia demonstrar ser. Mas quando, com base no método weberiano, ocorre a crítica da dominação, por exemplo, a crítica de Lobrot ao que se pode designar dominação burocrática, o objeto são relações que se propagam desde o modo de funcionamento da empresa, isto é, o modo como o tipo da ação está localmente relacionada ao exercício da autoridade. Isso reflete na crítica de Foucault, tanto à abordagem sistêmica quanto à teoria da ideologia.
         O Saber, naquilo em que faz bloco com o Poder na modernidade, no sentido do que em Foucault é uma dominação identitária, não consiste em significados de valor distorcidos em relação ao que seria o autêntico para o sujeito. O saber não é ideologia, ele é produzido por formas válidas de obtenção e sistematização de dados, mas o que o torna uma dominação é que ele coloca como as verdades que obtém o objetivo universal da subjetividade humana, quando isso é decorrente, ou circularmente correlato, apenas da forma de autoridade de que assim se investe.
          Que alguém tem de fato certo modo de se comportar sexualmente é uma verdade, mas que isso é uma verdade de sua identidade é que, não se tratando de ideologia, decorre apenas como a consequência de um juízo cujo sujeito se tem como autoridade quanto à normalidade orgânica e psíquica, ou quanto ao significado do comportamento sexual em relação à existência em geral. Assim, para Foucault, apenas pugnar para demonstrar que algum comportamento sexual dado como desviante, é na verdade conveniente à normalidade do corpo, da mente ou da vida, significa permanecer no mesmo a priori do Saber moderno-ocidental, não sendo uma política que se possa validar como de fato antagonizando-se à dominação do Saber-Poder.
         Essa crítica também é a das feministas num parâmetro mais recente, como em Jane Flex e Judith Butler, mas quanto a esta, de fato não compreendeu que isso já estava sendo expresso na História da Sexualidade, supondo que Foucault estava pretendendo atribuir normalidade a qualquer proliferação sexual-identitária. Flex entendeu Foucault apenas como trazendo à epistemologia a crítica do paradigma unitário cientificista, mas de fato sua crítica é mais profundamente relacionada à premissa meta-teórica da teoria feminista recente, como estamos notando.
       Por outro lado, apenas reconstituir fenomenologicamente que significado está sendo atribuído como comportamento, e como o sujeito incorpora o valor atrelado ao significado, não nos esclarece a propósito do modo pelo qual o sujeito pode não estar, absolutamente, movido por esses valores, ou seja, a abordagem sistêmica nada mais nos fornece do que tais valores supostos universais de uma sociedade dada. Já a crítica de Heidegger ao “impessoal” e ao padrão geral de conduta que elide a autenticidade do indivíduo, não atinge esse ponto, pelo qual não há um critério extrínseco de impessoalidade e pessoalidade, pelo qual possamos entender a dominação em termos sociais. O conflito social envolve uma multiplicidade de fatores que não se distribuem necessariamente desse modo dicotômico. Ele precisa ser conceituado do ponto de vista relativo ao que efetivamente ocorre, não de um modo generalizado.
       Quanto ao método weberiano, o nexo entre empresa, ação e autoridade conduz a um modo de apreciação do fenômeno do capitalismo, mas sem reduzi-lo a algo único. O capitalismo exibe o aspecto de um fenômeno econômico – onde se trata do tipo de ação que ele limita, e das instituições que ele atualiza como legitimamente socializadas; e de um fenômeno social enquanto determinado exercício de autoridade decorre da vigência desse regime econômico como algo característico, não apenas marginal, da sociedade.
       As instituições - por exemplo, a letra de câmbio, as transações bancárias, certas operações ao portador, isto é, impessoais, que dependem apenas da posse de documentos para serem efetiváveis - trafegam num meio empresarial em sentido restrito, a firma. E na junção da ação racional, firma e instituições econômico-racionais, temos a autoridade puramente racional, tudo isso junto formando a noção restrita de burocracia moderno-ocidental. Em sentido amplo, a burocracia é ação e autoridade racionais, mas não firma e instituições socialmente validadas pela vigência de um regime econômico capitalista que corresponde somente ao sentido restrito.
          Não obstante, quanto ao sentido restrito, temos então o limiar crítico pelo qual há, ou não, o ponto em que a autoridade racional burocrática se torna dominação burocrática, naquele cenário em que se agigantam consequências da burocracia, ou imprevistas, ou estrategicamente articuladas a exercícios não racionais de autoridade, ou ainda devido a interesses projetados de um grupo de participantes sobre os outros grupos.
         Weber não supõe que a burocracia possa ser representativa, isto é, ele não confunde burocracia, Estado e governo. Assim, também não podemos confundir capitalismo com sociedade, etc. O que o método faculta é o exame do que observamos numa sociedade, em sua forma de governo e no que aí se designam instituições estatais. Esse exame nos fornecerá o que já assinalamos, em termos de empresa, ação e autoridade, mas quando se trata do cenário moderno-ocidental, então há uma relevância já conceituada e justificada, no sentido de que a empresa é, quanto à composição social, a firma, de que se segue a burocracia como o fator que atravessa todos os itens relacionados ao binômio sociedade-estado – tomados de forma autônoma ou na sua implicação recíproca.
         Creio que esse método está fornecido, no essencial, por Weber, mas sua aplicação, de um ponto de vista que extrapola o interesse histórico do enfoque preferencial de Weber, depende dos estudos variados daqueles cientistas sociais que dele se utilizaram. Não me parece que Weber pensasse que a burocracia não pudesse ser socialmente saudável como racionalidade a elidir a dominação veiculada por outros meios, mas creio que ele instituiu o limiar crítico uma vez que seu método não é a priorístico, nem sistêmico.
         Pode ser que sua maior crítica quanto a isso fosse, como se poderia depreender da citação de Chacon em que Weber ironiza ao extremo a “representação corporativa” , que uma burocracia pura era historicamente muito improvável, em vez dele ter tematizado diretamente o que se tornou tão referencial mais tarde, como os aspectos conflitivos definíveis desde a observação empírica do entorno moderno-ocidental já burocraticamente definido.
         Em todo caso, há aí uma duplicação, pois a burocracia se torna tanto o meio da firma, quanto algo relacionado à racionalidade governamental numa sociedade que superou as formas tradicionais de governamento. Na teorização unicamente de Weber, quanto à firma, a questão da sanidade social precisa equacionar a propriedade; e quanto ao governamento, é o que envolve a tematização, ou problematização, da “racionalidade pura” no sentido da “burocracia pura”. Nas teorizações que se derivam dele, então são os problemas suscitados pelo desenvolvimento do capitalismo desde o cenário das guerras que se tornaram conceituáveis.
         Nisso encontramos o nexo assinalado por Foucault, entre o método weberiano e os neoliberais alemães. A importância verdadeiramente insuperável de Weber, em termos da magnitude da ruptura histórica que efetivou, se demonstra já pelo modo como Foucault nota que se os neoliberais alemães derivam de Weber a sua “escola de Friburgo”, aqueles que conhecemos como sociólogos críticos derivam igualmente dele a sua “escola de Frankfurt”. Inscreve-se desde aí o capítulo subsequente ao que estudamos, na história da sociologia.
         Quanto ao cenário alemão, o pós-guerra vai repetir, por assim expressar, o que podemos assinalar para o início do século, antes da tendência formalista se afirmar, ao longo dos anos vinte, para tornar-se característica do cenário que é bem adequado designar o “alto modernismo”, como se faz em estética . Ou seja, a sociologia alemã influencia, desde que descentra em relação à concepção substancialista da sociologia; o que exemplificamos na formação de Park, aluno de Simmel, o que o conduz a uma originalidade bem oposta às generalizações da sociologia francesa de Durkheim.
        Agora, nos anos cinquenta, já notamos que nos EUA o próprio estrutural-funcionalismo começa a ser eivado de estudos que focalizam os problemas da aplicação funcional de Weber e das abordagens sistêmicas em geral. Marsal designa, para esse período, o surgimento da “dissidência” nos EUA – ele cita, além de Wright Mills, Gunnar Myrdal e Barrington Moore. Mas vimos como isso está mais do que apenas pronunciado por esses autores, que atacam frontalmente o uso corporativo da sociologia a serviço da empresa, digamos, como se usa a psicologia para selecionar trabalhadores e discriminar pessoas. A elevação a um nível crítico parece mais uma tendência generalizada nessa época, cuja antecedência dos sixties, e relações demarcáveis com o que ocorre então, parece bem reconstituível.
         Marsal chega a notar que a dissidência – enquanto tendências que proliferam à margem do que se consolidou como referencial universitário estrutural-funcionalista – correu paralelamente à consolidação da sociologia nos EUA desde os inícios, exemplificando com Veblen, mas a periodização autorizaria mais a incluir Veblen na corrente ativista que antecedeu a consolidação acadêmica da disciplina nos EUA. Já quando ele examina mais detidamente a dissidência propriamente dita, ou seja, os citados autores que tematizam criticamente o estrutural-funcionalismo ou o limite sistêmico, portanto na base de uma anti-sociologia, já que nesse país a sociologia havia se tornado sinônimo de funcionalismo, logo deriva para o que designa “o renascimento sociológico na Europa” do pós-guerra, por onde podemos definir facilmente a referencialidade da Alemanha – sendo os parâmetros citados o neomarxismo e a teoria crítica, abrangendo na exterioridade dessas fontes alemãs apenas a referência do estruturalismo francês.
         Ora, isso nos fornece dois focos desse novo estágio na história da sociologia – a onipresença do estruturalismo desde os sixties, e o que poderíamos designar a questão Max Weber em sociologia. O neomarxismo, majoritariamente o de Althusser, ainda que Marsal referencie oportunamente também Poulantzas e Harnecker, é estruturalismo aplicado à leitura de Marx; mas, onde os sixties exibem algumas constantes, uma delas será exatamente a contraposição ao reducionismo do “modo de produção”, entre outros motivos devido às questões do terceiro mundo, em nome da “sociologia” - e assim fala-se desde aí de modelos de conflito, se alternativos a Marx, como “sociológicos”.
         É então que o pós-estruturalismo nos sixties surge como a decisão em torno dessa alternativa, mas o que há de sociológico nessa vertente sempre exibe uma relação assinalável a Weber. Um tanto surpreendentemente, pois isso não é comum destacar, vimos como Foucault no Curso posicionou a teoria crítica ou Escola de Frankfurt, que podemos associar de Benjamin a Adorno e Horkheimer, mas especialmente Marcuse, como algo que deriva de Weber ou está a ele relacionado.
          Em todo caso, se essa questão Max Weber mostra precisar ser desenvolvida com maior minúcia, aqui devemos completar o quadro das mudanças que assinalam esse novo momento na história da sociologia. Junto à revivescência das influências alemãs, temos imediatamente o que é importante no cenário desse país, nesse período que estamos examinando, entre os cinquenta e a curva aos oitenta – as extensões da teoria crítica e a transformação da sociologia pela teoria da comunicação, como em Habbermas e Apel; o neoliberalismo transformado num pensamento social. O quadro me parece um tanto polarizado entre essas duas correntes iniciais, que sempre se deixam contaminar um tanto por Marx, e os neoliberais.
           Na França, o rise do estruturalismo desloca indubitavelmente a metodologia funcionalista de Durkheim. A importância de Levi-Strauss quanto a isso, se lembrarmos o quanto o estruturalismo foi e tem sido revolucionário, não deve ser minimizada por Saussure, pois, de fato, quanto a este, por si só o que facultou foi o cenário anterior estrutural-funcionalista, não o estruturalismo puro – a meu ver. É certo que Lacan deve ser pensado, enquanto realizando com Freud um trabalho semelhante ao de Althusser com Marx, como tendo sintetizado para isso a metodologia de Strauss e Saussure, e que, de um modo geral, a linguística deste é “estruturalismo”, mas não foi utilizada assim desde Jakobson, ou nos anos trinta, por exemplo. Isso é um tanto complexo, pois a história da linguística geralmente é contada na referencialidade de Saussure “estruturalista” – uma vez que o ponto de vista do historiador se coloca na atualidade, onde a transformação de Strauss e Lacan já está feita.
         Sem aprofundar a polêmica, aqui tendo-se estabelecido a oposição entre correntes que se tornaram típicas de épocas, como o estrutural-funcionalismo de visão totalizante para a metade inicial do século XX, e o estruturalismo como método de formalização de sistemas parciais que se afirma desde os anos cinquenta, o importante é notar dois itens: inicialmente que o estruturalismo se tornou uma metodologia que poderíamos designar de integração – os trabalhos tendendo a acumular sua aplicabilidade: de Strauss a Lacan, e deste a Althusser que o utilizou na teoria dos aparelhos ideológicos de Estado.
          Mas, o que é tanto mais essencial assinalar, se na França essa metodologia rompe com a preponderância de Durkheim, isso não significa ainda que tenha feito uma ruptura como a que se poderia designar de fato “crítica” em ciência social - não no sentido de Frankfurt, mas de “crítica da cultura”, ainda que isso pareça inaplicável na presença de um pensamento como o de Althusser. Entendemos bem do que se trata quando notamos que é que realmente interpõe essa “crítica da cultura” na França, sendo ao mesmo tempo, o que aí acarreta a referencialidade do pensamento alemão. Trata-se do pós-estruturalismo, como em Foucault, cuja influência básica é Nietzsche, e justamente como autor que produz a “crítica da cultura” que se tornou o típico da produção alemã desde o seu tempo, por onde a surgência de Weber à escola de Frankfurt, etc. Essas relações de época não são pensadas, portanto, como filiações diretas, mas como correspondência de critérios vigentes numa problemática assinalável
           O que podemos notar quanto a relação dessa crítica com a do marxismo é o seguinte: neste a sociedade em si, e por conseguinte a cultura, não são objeto de crítica, e sim a ideologia como o que se desdobra de um modo de produção que aliena justamente a sociedade, tornando-a conflitiva. O conflito não é a essência do modo de produção, senão daqueles que se determinam pela apropriação de um excedente, como o capitalista. Em compensação esse é todo o conflito – como se vê pela sobreposição que Engels torna explícita, entre a questão dos gêneros sexuais e a propriedade, a subalternidade de gênero sendo devida à necessidade patrimonial sobre a filiação.
          Mas quando transitamos a Nietzsche e Weber, por um lado, não há categorias gerais formalizantes de todas as sociedades históricas – as que efetivamente existiram e as que subsistem; por outro lado, a cultura deixou de ser um desdobramento automático do modo de ser do sujeito, e é nesse sentido que não se trata mais de “humanismo” - pois a automática sinonímia de sujeito e ser humano em geral não mais se aplica justamente devido à superação das formas de relato evolucionistas, logo, devido à irredutibilidade das culturas, o que determina irredutibilidade na subjetivação. Note-se que o utilitarismo inglês também está assim sendo ultrapassado – Stuart Mill ainda falava das ciências sociais como podendo ter a psicologia como centro.
          A cultura torna-se algo que deve engendrar a temática de sua relação com aquilo que nela se presenta, o que antes se pensaria imediatamente como o sujeito – mas a questão da ciência social se torna, justamente, essa, se não quer mais ser reduzida ao que ela não é, à psicologia: que é que se presenta, que é que precisa ser conceituado como o objeto da ciência da sociedade e da crítica da cultura, se essa perspectiva “crítica” se torna incontornável quando notamos que, seja lá como for que o conceituamos, há um conflito notável, imediatamente aparente, na cultura, que é precisamente o fato dela não ser imediatamente sujeito, dela ter que “sujeitar” - note-se que se ela não pode ser explicada pelo ser assim do sujeito em geral, que já vimos resultar uma abstração etnocêntrica, também o recurso marxista de explicá-la pela necessidade ou carência, ou base econômica, revela-se reducionista no sentido epistemológico do termo. A sociologia, se não é função da psicologia, também não o é da economia.
        Completando o quadro, como já notamos, na Alemanha temos o revival da sociologia, tornando ao foco polêmico essa autonomia que recoloca a questão Weber. Isso repercute nos EUA com emergência das tendências críticas, de modo que a referencialidade de Weber no país continua agora num parâmetro inverso ao sistêmico, que inicialmente inspirou. Na França, desde o estruturalismo temos a ruptura crítica com a introdução da influência manifesta de Nietzsche no pós-estruturalismo, mas quanto a este, como estamos notando com Foucault, o pensamento social efetivamente implica Weber.   
         Na Inglaterra, a tendência empirista permanece, o tipo de pesquisa baseado na observação e sistematização de dados, mas já absorvendo as superações epistemológicas com relação ao utilitarismo. O importante no cenário inglês será seu pioneirismo na aplicação do neoliberalismo na política de Estado, na era Reagan, com Tatcher. Isso será enfatizado quando, após os anos oitenta, a crítica das premissas neoliberais em sociologia se tornam facilitadas pelo contraste de aplicação e discurso. A Inglaterra tatcherista se tornou um foco de visibilidade para a evidência da intromissão do conservadorismo de Estado na comunicação e na cultura, como algo explicitamente requisitado pela política neoliberal, em vez da minimização do papel da política estatal. O que esses estudos mostraram foi que o Estado tatcherista se imiscuiu de fato no andamento da cultura no país.
           Esses estudos, no entanto, são um exemplo da continuidade de correntes teóricas em sociologia: o pós-marxismo, desde os anos noventa, especialmente, forçando o retorno das teorias da ideologia, para opor-se, com isso, ao avanço do pós-estruturalismo ao pós-modernismo que está intrinsecamente relacionado à sociologia do terceiro mundo com seu requisito de irredutibilidade cultural, o que enseja aquilo que o pós-estruturalismo começou por realizar, a utilização da instrumentalidade conceitual do inconsciente em teoria social sem redução psicologista.
           Logo, isso não implica redução do social ao subjetivo, ou pelo menos não deve fazê-lo, e como já notamos, é essa a margem polêmica que permanece atual: até que ponto uma teorização específica, que já sabe que tem que operar essa convergência, logra fazê-lo sem reducionismo? Isso, a meu ver, é bem oposto a simplesmente negar esse caminho como fazem os marxistas, com base em que qualquer utilização nesse sentido é reducionista - pois de fato podemos mostrar não ser esse o caso.
         Contudo, é a extrema positividade dessa polêmica que convém destacar, para compreender a tendência, aparentemente desconcertante, dos acontecimentos nos inícios do terceiro milênio, quando o que parece conspícuo é o impasse.
           Como não se teve lá muito boa vontade com relação ao equacionamento legítimo da necessidade da teoria do inconsciente no pensamento social, a consequência foi o que a recusa desse caminho, dada a sua necessidade, não podia ter deixado de ser: uma recaptura no sistêmico, tanto mais se está tentando precisamente criticar ou mostrar os aspectos indesejáveis dessa abordagem.
Isso por que sem colocar em nível de subjetivação aquilo que se designaria formação e sentido dos papéis sociais, para instalar a teoria numa base que elide essa etapa, o que se tem ou não pode evitar ter, é uma teoria assim, só que intematizada, logo, inevitavelmente etnocêntrica, baseada num universal do sujeito. Isso não contradiz o que estabelecemos acima, a saber, que a sociologia desde Weber não se reduz ao sujeito ou à psicologia.
           O que estabelece é que os fenômenos sociais estão relacionados à constituição da sua participação pelos sujeitos socialmente implicados – papéis, instituições, tudo o que depende da aptidão a conferir sentido que não se resume ao que chamamos consciência, posto que esta já é o efeito dessa constituição, como aplicação dos cálculos de sentido que dependem de premissas poderem ser atribuídas assim – não como opondo o significado e o absurdo, mas como simplesmente pensável, conforme Derrida, por exemplo, nota a propósito da escritura na sua relação constitutiva com a objetualidade: o regime pelo qual o objeto é contra-posto ao sujeito não é universal, mas estritamente sócio-historicamente localizável (moderno-ocidental).
           Quando se estabelece o limite na “crença” para exibir uma tipologia de crenças, não se pode manter a visibilidade dos processos sociais – pois ora se supõe ainda a totalização de uma “sociedade” com base nas crenças que propaga, mas o que existe são multiplicidades de processos sociais de modo que a totalidade não passa de isolamento para análise de uma classe ou grupo “dominante”; ora se reduz o conflito à ideologia, quando parece nítido que a redução causal unívoca qualquer limita a visibilidade do que ocorre.
         No entanto, o que ocorreu na Inglaterra nos anos oitenta, surgindo institucionalmente no governo Reagan, se alastrou pelo mundo – no Brasil o Estado neoliberal se implementa desde o governo Fernando Henrique. Isso implica que a abordagem sistêmica contou com os apoios da censura institucionalizada que obviamente temos que aceitar existir para todos os governos que seguem as premissas neoliberais.
         Essa censura não é do tipo ditatorial, contudo; ela não funciona na base de uma instituição determinada, com funcionários pagos para examinar previamente o conteúdo das publicações a fim de conceder ou recusar licença para circulação no território nacional, como era o caso na ditadura militar brasileira. Inversamente a essa censura institucional-explícita-legalizada, funciona agora uma censura difusa, não-legalizada, com base nos esquemas de preferência, de seletividade nos investimentos do mercado de publicação e comunicação em massa – de forma bastante generalizável desde os estudos citados a propósito do tatcherismo.
       Isso de modo que não se pode afirmar ser impossível ou coibido desenvolver explicitamente o aprofundamento da crítica social, ou publicar resultados assim derivados, mas somente que, historicamente, o cenário dos inícios do terceiro milênio está marcado por esse novo tipo de ingerência estatal, a cultural, que é decorrente do neoliberalismo. Mas isso pode não ter sido o esperável de todos os referenciais weberianos – sistêmicos ou anti-sistêmicos. Completo o quadro da transição ao panorama mais atual na sociologia, ainda que obviamente muito resumido e feito apenas para nortear nossa investigação, será oportuno observar como esses referenciais weberianos compartilhavam certas premissas que na atualidade estão sendo notoriamente desfeitas.



                                                                                                                   Livro 3
   6 -

                                                                
                                                         Nesse trecho reordenamos o que vimos anteriormente, numa perspetiva mais abrangente.
    
          A classe operária é conservadora? A descoberta de que se pode responder afirmativamente a essa questão, para alguns, é o que provoca o surgimento de um novo imaginário político – não redutível ao conflito do trabalho, como já se havia há muito constatado que uma sociedade que resolvesse o conflito do trabalho, não poderia garantir ter só por isso resolvido os conflitos culturais, como as questões de ética e moralidade, ou existenciais e psicológicas.
          Mas podemos falar de um cenário político pós-moderno, quando se observa que essas questões não são restritas ao eixo privado de sua abordagem. Como vimos acima, podemos assinalar uma ruptura histórica quando a questão cultural não mais se aprisiona ora no dilema do marxismo entre subjetividade e objetividade, ora naquele mais sutil do parâmetro weberiano, entre o tradicional (primitivo) e o racional-legal (moderno-ocidental).
        Consideramos acima os núcleos problemáticos que implicam a necessidade atual de rever os escritos de Weber, uma vez que o status desse parâmetro como weberiano tendo se tornado pervasivo, comporta considerável gama de generalização em relação ao que seria o seu pensamento autêntico. Ó "círculo de Weber" na Alemanha é como se designa o grupamento em torno de sua pessoa, de praticamente toda sociologia alemã de inícios de século - isso está bem documentado no estudo de Löwi, Romantismo e Messianismo. Aí temos uma apresentação bem coerente desse contexto sociológico, não obstante sua redução desse movimento de época ao Romantismo não apreender bem o sentido deste. Justamente o pivô é o tradicionalismo, que Löwi pensa ser tão marcante do círculo de Weber e do que dele se espraia, por que, sendo uma retomada do Romantismo, retoma assim o que nele seria essencial.
          Mas quando lemos W. Schlegel, Schelling ou Hegel, vemos que os românticos não se interpretavam como passadistas, bem inversamente, estabeleciam-se como pós-clássicos e modernos na acepção da posse de uma crítica exaustiva do passado clássico,  não só do Aufklarung,  em vista das rupturas de que se beneficiavam e que lhes era dado pensar, a História  como ciência social, e a evolução em biologia, o que fez deles os pioneiros enunciadores do Sujeito pensável, não apenas intelecto formal. Sua recusa do Aufklarung não era um anti-progressismo, inversamente,  era a recusa de  um pensamento sem história, portanto não passível de apreender a questão da formação, como se inseria agora a questão da pluralidade cultural; também não-evolutivo, portanto ainda incapaz de pensar o devir na natureza. A sociedade aufklarung é que  o  Romantismo pensava imobilista, anti-progressista, mera generalização de uma imagem de intelecto que já não se podia aceitar senão como obsoleta.
            E quanto ao começo do século XX, é somente a informação antropológica, vinda do trabalho de campo na margem pela circunstância do neocolonialismo, o que interpõe o parâmetro organicista, assim chamado funcionalista, que rompe com a interpretação da pluralidade cultural dos positivistas, isto é, como passível de ser posto numa fileira do menos ao mais sócio-evoluído uma vez tendo sido reduzida toda cultura à posse de técnicas.
            Além disso, devemos notar que os românticos se  concedem como tafera pensar a sociedade industrial emergente, e é por isso que são posteriormente rotulados utópicos, posto que o pensavam ao mesmo tempo que auto-interpretando-se sujeitos históricos da sua efetivação, sujeitos constituindo-se nesse conflito histórico do como vir a ser desse estado sócio-econômico-cultural futuro. O positivismo, ao contrário, lança irreversivelmente a sociedade no parâmetro determinista, e essa irreversibilidade podemos afirmar não porque o evolucionismo social tenha sido constante desde aí, já vimos que não; mas porque apenas se julgou equivocado ter reduzido objetividade a determinismo pseudo-evolutivo. A objetividade do fenômeno "sociedade" na sua autonomia -  enquanto objeto epistêmico -  é o alicerçe inabalável da sociologia, ciência que não existia antes do positivismo. Ora, a época romântica é coincidente com os movimentos de emancipação nacional nas margens, enquanto a transição ao positivismo é concomitante à transformação imperialista da revolução industrial transitando desde a ingerência inglesa na América Latina. Há sociólogos que interpretam o racismo pseudo-evolucionista como mera justificativa idealizada do imperialismo, como Rumney e Maier.
           Quando emerge o parâmetro funcionalista, com o trabalo de campo a evolução não mais pode ser interpretada socialmente, só biologicamente, e eis o contexto do "compreender" das humanities, versus o explicar das ciências da natureza, quando no positivismo, as ciências do espírito românticas estavam substituídas por ciências como a sociologia e a economia política, cujo estatuto epistemológico se devia a serem passíveis de se demonstarem extensões das ciências da natureza pelo determininismo do meio como algo objetivamente integrável de qualquer fenômeno. Entre ciências do espírito românticas, e ciências humanas "compreensivas", vimos que inscreve-se a irredutibilidade do trabalho de campo. Aquelas, pois, desenvolveram-se num parâmetro histórico-hermenêutico que é muito oposto a destas, cujo parâmetro é antropológico, por aí "hermenêutica" no sentido heideggeriano, sendo a integração de algo mais que também se imiscui nesse ínterim, a linguistic turn ou linguagem-estrutural, e assim não redutível á de Schleiermacher.
           As sociedades no funcionalismo estão dentro do critério estrutura-função, todo-parte, organismo-sistemas integrantes. Cada sociedade é um todo, uma identidade étnica diferente das demais, um contexto de tradição cuja relação com a história vai ser variável conforme a apreensão teórica, pois a rigor o primitivo não teria história, seria a sociedade do tempo cíclico; mas se a linguagem se pensa também como totalidade de visão de mundo, cada língua como uma totalidade assim, a consequência é espraiar-se sempre mais a noção de originareidade do todo, pois o que se está tentando evitar é a consequência igualitária, que se critica como meramente solvente da cultura, da sociedade moderna-ocidental-científica-tecnológica. A "historicidade" de Heidegger é assim apenas a redução como meio de sentido, de uma língua. pelo que aquilo que nela se "entifica", se enuncia como um ente (referência) não é uma objetividade universal, mas algo cujo sentido está na dependência dessa anterioridade que é a língua-cultura. Não há como nas ciências do espírito românticas, a noção de formação e a problemática da heterogeneidade e progresso, em que essa noção coalesce.
           É assim que de Weber, onde só o que vemos é um estudo das burocracias, a oposição do patrimonial ao racional-legal como um crescendo da racionalidade, o que se tem consolidado nos anos trinta é uma rejeição da racionalidade confundida com cientificismo tout court. Einstein na Alemanha foi vítima de perseguição enquanto aceitou ficar, como alguém cuja concepção de ciência como linguagem internacional de sábios, acima de diferenças étnicas ou de nacionalidade, era indesejável a um regime que ostensivamente adotava como política universitária o atrelamento militante de todo cultivo de saber - como destacou um seu biógrafo, R. Clarck. A comunidade internacional dos cientistas nessa época estava ciente dos problemas, no entanto alguns como Mme. Currie, julgavam que a permanência de Einstein na Alemanha era estratégica à resistência democrática no país. Se Einstein pensava também assim, chegou o momento de confrontar a impossibilidade dessa resistência, e a opção entre ser eliminado ou sobreviver emigrando. A carta de Einstein a Mme. Currie, em resposta à solicitação dela para que permanecesse mesmo perante os acontecimentos traumáticos mais recentes, na qual ele informa que ela não estava ciente da situação real, é histórica.
           Os totalitarismos na Alemanha, Itália, Japão, Brasil, são essas sociedades fechadas, essas culturas "totais", fabricadas pelas políticas ditatoriais governamentais que alijam os elementos que não pareceriam "típicos" do seu discurso nazi-fascista. Por outro lado, isso se dizia um nacionalismo, mas na verdade não era como apregoava, pois a heterogeneidade em relação ao seu típico, não importando se as pessoas eram naturais do páis, era considerado suficiente para alijamento da ideia de nacional. Muito menos era um "socialismo", posto que uma máquina de guerra voltada diretamente contra o comunismo soviético.  Por esse lado, no entanto, vemos que na Rússia a revolução estava enveredando pelo mesmo fechamento conservador-totalitário, ainda que não pelas mesmas premissas da gemeinschaft (comunidade tradicional) versus geselschaft (sociedade moderna). 
        Em todo caso, nesses dois cenários vemos que a "cultura" restringe sociedade ao seu nódulo objetual - luta de classes ou totalidade das funções. Conflitos que não sejam redutíveis ao primeiro, não tem trânsito, posto que não há conflito no segundo, exceto para o que excede "tradição" e precipita a sociedade industrial-"racional".
          Assim, "tradição" servia indiscriminadamente aos conservadores e aos libertários, conforme se interpretasse o primitivo. Em todo caso, ele era pensável de um modo redutível ao idealizado feudo, onde cada um se confunde com seu papel social, não há sujeito fora do imaginário da sua função regulado pela totalidade de visão de mundo da sua linguagem que é feita, circularmente, dos significados das funções localizadas nessa comunidade. Mas ora o feudo-tribo era pensado pelos conservadores como o lugar da autoridade sancionada desde o âmago das mentalidades, ora, inversamente, era pensado pelos libertários como a "natural" integração de cada um num todo sem domínio centralizado.
          Nós estamos na necessidade de constituir conceitos novos quando a antropologia já não pode mais suportar essa descrição da alteridade cultural como algo redutível a um padrão generalizável de tudo o que está na exterioridade da modernidade ocidental.
         Como assinalei, pode ser que Weber e alguns sociólogos mesmo do seu círculo que inicialmente trabalharam a oposição do moderno-ocidental e seu "outro", como seria de se destacar Tonnies, não estivessem a princípio interessados  nesse ambíguo pré-texto da obtenção de uma natureza-cultura normativamente originária, mas às voltas com os dois problemas de pensar a sociedade industrial  presente e equacionar os dados antropológicos como duas tarefas que a princípio não se deveria saber como coordenar.
         Há um aspecto descritivo, que não tem a ver com o pré-texto da "consciência" fenomenológica, detectável em conceitos como o weberiano "pessoal" e "impessoal", onde por um lado temos as sociedades em que não pode haver transações econômicas senão sancionadas por uma autoridade espiritual, e por outro lado aquelas em que as transações são puramente racionais, impessoais;  ou como o de  " coletividades sociais" e "coletividades  societárias" de Tonnies, onde temos por um lado,vínculos originários como entre familiares,  e por outro lado vínculos contraídos por laços contratuais racionais, como partidos políticos ou associações profissionais.
         Em todo caso, sempre que é o caso de pensar a sociedade industrial presente, o aspecto de conflito intervém como o limite epistemológico do funcionalismo de signo totalizante. Tudo contribui assim para a absorção posterior desses pensadores como críticos do progresso pela defesa da totalidade-unidade, enquanto a ruptura desde o estruturalismo, no pós-guerra, se coloca pelo retorno da heterogeneidade como algo não negativo, mas incontornável ao pensamento social.
          Ora, desde aí até agora, é o papel da história que muda, pois a princípio, a heterogeneidade se pensa dentro do parâmetro da estrutura, apenas esta não mais precisava ser totalizante, descrevendo apenas fenômenos circunscritos. Na pós-modernidade, a história desloca o sistema quanto à inteligibilidade fenomênica, mas o problema em que estamos é que se a linguagem formal não pode mais reduzir a história, esta também não pode extrapolar o limite epistemológico da linguagem, por aí o importante é apreender as mudanças na linguística, interpostas por um viés pós-saussuriano como exemplificável de um intuito como o da Gramatologia.


            Atualmente, parece-me claro, como se pode exemplificar pela leitura da crítica de  Hannah Harendt a propósito da cultura nos Eua, que esse “tradicional” que deveria ser preservado como a cultura autêntica contra a invasão da comunicação e da sociedade de massas, concomitantemente das ciências e da racionalização empresarial, era eurocentricamente preconcebido.
           Para ela, a América, o “ermo sem história”, não constituía portanto uma tradição referenciável – a fim de evitar ser reduzida a um horizonte mecânico de massas, os americanos deviam socorrer-se da história, logo, da Europa. Mas, circularmente, nesse artigo história é sinônimo de cultura que é sinônimo de tradição. Harendt está consciente de que tradição pode ser algo reacinário, agindo contra a emergência do novo justamente na cultura, mas ela pensa que esse aspecto é negligenciável desde que por tradição não se tenha um sinônimo apenas de passado, mas do que é constitutivo, do que impulsiona o verdadeiramente atuante no presente.
            Ora, porque a América não o teria? Na argumentação do texto, o motivo está apoiado na antonímia entre tradição e comunicação de massas. Mas a questão do texto é a educação nesse país, e por aí o que está sendo criticado aparentemente é a inexistência de um fosso intransponível na concepção do que é impresso e circula, e do que tem um valor independente da circulação. Onde portar esse valor, se a priori os valores da recepção do que circula estão determinados como fora da cultura porque não concebidos "históricos" naquela acepção de tradicional?
          A prescrição de Arendt, no sentido de fazer do profissional de educação algo mais do que alguém que  pragmaticamente ensina algo, portanto pode ensinar qualquer coisa contanto que seja do seu conhecimento o conteúdo,  parece contraditório com seu apelo pela preservação da fronteira do particular  e do público  quanto à criança; sobretudo, ela está contra o que chamou "temperamento político do país", o que chamou tendência ao nivelamento, mas que na verdade é um pressuposto da democracia, por um lado; enquanto por outro lado nós já sabemos que os observadores iniciais não apreenderam a extratificação da sociedade estadunidense por que ela não é tipicamente de classes, e sim de status.
           O texto de Arendt, nessa ignorância da irredutibilidade social, salta arbitrariamente de uma circunscrição do caráter deficitário do país enquanto de margem, recentemente constituído e emancipado, à postulação da tarefa de prover a essência da educação em geral como o que iria resolver ao mesmo tempo os dois problemas - o educacional americano e o social europeu, porquanto tratar-se-ia justamente de preservar o constitutivo da sociedade em geral, a tradição.
           Mas que os processos de constituição desses horizontes nem é função de uma oposição fundadora tal como entre possuir ou não história/passado, visto ela resultar apenas de que os Eua foram reduzidos à personificação do capitalismo, da massificação, etc., tudo ao contrário de sociedade, deveriam ser pensados,de modo que educação pode ser algo que dependa da relatividade cultural para ser problematizada, é o que se torna inapreensível nessa perspectiva.
          Podemos ilustrar isso com Benjamin. Ele pensava a narrativa em oposição ao romance, ilustrando essa oposição do aberto e do fechado, pela oposição entre o conteúdo dado do romance, e a relação de comentário e texto sagrado na qual a cultura viva significava a independência do comentário, seu perpétuo fluir na narrativa. O comentário está sempre sendo renovado na atualidade dos leitores do texto sagrado, mas como as narrativas, o que eles ensejam são novos comentários, pois o que colocam são questões, pontos de vista a serem problematizados, etc. É esse o sentido de “tradição” para Benjamin, uma continuidade e renovação que Harendt pensa, também, como perpétua criação viabilizando-se, porém,  somente em torno de referenciais a um pré-texto já constituído. A comunicação de massas, inversamente, propagaria apenas dados, formas imediatistas de mensagens, como o romance para Benjamin, ou seja: sempre temos cultura somente quanto o sujeito particular foi neutralizado no pensamento justamente ao ser mais focalizado, porque ele só está aí para personificar o pré-texto, e se não for assim ele é o fantoche da sociedade de massas, etc.

        7 -
           
            A oportunidade de revisão do texto autêntico de Weber obteria um item considerável ao notarmos que poderia ser  inevitável sobrepor essa “tradição”, usada por Arendt e Benjamin como definição de cultura, ao que, utilizando o ideal-tipo weberiano, iríamos designar a ação tradicional, orientada pelo costume, ou então a ação orientada por valores (Wertrational). Isso por que um aspecto não negligenciável da crítica à modernidade movida por Harendt e Benjamin, mas sempre mais tematizada desde a “teoria crítica” e dos ambientes hermenêuticos e fenomenológicos, ao longo do século XX, é a associação entre o dado, o significado puro visável – pensado como anátema – em termos de conteúdo do que seria a falsa-cultura, e a ação racional objetiva (Zweckrational).
           No entanto, o que precipita o pós-moderno é justamente a inviabilização dessa suposição. Inversamente, é a ciência que circunscreve absolutamente o seu objeto em relação a qualquer pretensão "contextual" além da sua regra de jogo. O que estava sendo rejeitado antes era justamente o impensável àquela pré-concepção da totalidade contextual da cultura. Em vez disso, a cultura é sobreposição e geração de linguagens irredutíveis, dentre as quais a do sujeito. As ciências são linguagens e estão dentro da cultura, do mesmo modo que a arte, a filosofia, etc.
            A questão não é que se devesse agir só de um modo ou de outro, em nível privado - posto que por aí tudo o que teríamos seria o homúnculo ou o estereótipo. O problema trafega naquele nível em que Weber tematiza o desdobramento dos tipos de ação aos tipos de sociedade – assim como, na sua sociologia, podemos modelizar o feudalismo, o capitalismo, os impérios asiáticos, o patrimonialismo, o sultanismo, a democracia, a burocracia, etc. Especificamente o capitalismo é a generalização da ação racional objetiva, de modo que todas as instituições sociais são intermediadas por elas. Já o problema em nível da história da sociologia, repetindo, é que a crítica que se moveu a partir daí ao capitalismo, como na “teoria crítica” e em Harendt, muitas vezes adotou Weber como tendo sido seu pioneiro enunciador.
           Essa crítica se tornou quase consensual no cenário de confrontação ao nazismo, e depois, no pós-guerra, no enfrentamento do imperialismo das super-potências. Consistiu basicamente, em conceituar a cultura e a sociedade como horizontes de ações que só são relevantes para sujeitos de sentido na medida em que se relacionam a sua história e seus valores, de modo que mobilizar objetivamente todos os aspectos da socialização seria alienante e desumano. O que permaneceu por pensar, pelo visto, foi a relação entre saber e poder, e a viragem que estamos interpondo se enuncia a princípio pelo foucaultiano locus da crítica da representação - suposição da totalidade de visão de mundo como a priorístico do Homem.
           Nesse ponto há a considerar se a crítica que surge nos Eua naquele parâmetro pós-parsoniano, ao circunscrever-se assim por ter tematizado o que chamamos o Poder na burocracia racional-legal, de fato pode ser alinhada ao que na Europa estamos vendo ser o caso do pós-estruturalismo. Na verdade, a teminologia da dissidência é "oligarquia", ou poder de elite, etc. - não se chega ao Poder nesse sentido de algo paralelo por um lado, e a inter-relacionar, por outro, ao Saber.
            É interessante sublinhar aqui, quanto ao pós-estruturalismo, que se ele se começa tipicamente, não só no exemplo foucaultiano, por essa crítica da representação que é formalmente uma ruptura com o funcionalismo e em particualar com a fenomenologia, seus resultados como vimos geralmente não se eximem de afinal desembocar numa articulação de mesmo signo totalizante que eles, não obstante fazer isso pelo viés da junção de fatores elementares, em vez da estipulação da unidade do conjunto.
          O "socius" guattari-deleuziano, o "discurso" foucaultiano que integra os a prioris do saber, do poder e da subjetivação para uma época ou uma sociedade, decerto não se pensam restituir o humano em si, o social em si, etc., mas na verdade o que determinam - arbitrariamente de fato -  é tudo o que há.
          Quanto a isso já assinalei que Derrida se mantém a exceção, o que permite posicioná-lo mais na borda do pós-modernismo que se poderia tipificar pelos "estudos" culturais, feministas, étnicos, etc. Por outro lado, esse impasse do todo está curiosamente referenciando-se no enunciado foucaultiano do Curso como algo que poderíamos posicionar num certo paralelo com As palavras e as coisas, pois neste estudo Foucault foi demasiado abrangente, e assim no Curso, ao nomear a centralidade de Weber, ele estaria provando ter se defrontado com a necessidade de especificar a história das ciências humanas de um modo não reducionista a priorístico como aquele que havia feito antes.
         O importante em todo caso, é notar que é a Weber que o enunciado do Poder-Saber afinal chega, enquanto nos Eua alguns dos encaminhamentos pós-parsonianos, isto é, quando o funcionalismo integra a questão do conflito social, estão explicitamente relacionados à sociologia da burocracia como algo que deriva de Weber. E mais geralmente, há uma inserção de todo parâmetro sociológico funcionalista à transposição feita por Weber, do limite do verstehen, como das questões que extrapolam as ciências da natureza, ao nível da cientificidade. Assim, há uma problemática considerável na atualidade, relacionada à história da teoria social.
          Aqui não me proponho "resolver" essa problemática, apenas assinalar o preponderante a que seja enunciada, e nisso o levantamento do papel consitutivo de Weber enseja supor que a releitura da sua produção é necessária.
          O que me parece importante é notar que se o pós-modernismo implica uma posição da alteridade cultural que impede a perspectiva intrínseca do capitalismo que era a weberiana, se no pós-modernismo a questão em geral da alteridade, sendo a do inconsciente-linguagem,  é o que implica uma ruptura mais profunda com a superação da metafísica como a rubrica do "ocidente" - numa aproximação, por exemplo, da desconstrução da paralogia de fundamento-suplemento - é a sociologia empírica que irá precipitar as consequências mais importantes e por aí, notamos o quanto aquela releitura deve estar relacionada a uma tematização o mais ampla possível das culturas de margens, à exemplo da sociologia de Robert Park nos Eua.
          É a sociologia empírica, ainda não de fato equacionada quando se trata de reclamar para a sociologia atual uma reordenação, um novo patamar de abrangência e impulso, pois isso geralmente se faz como retórica pró-funcionalismo exemplificada por estudos como o de Helmut Schelski sobre a "situação da sociologia alemã", que assinalam o que já existe com um porte suficiente para determinar a ruptura "gramatológica" para com todo o parâmetro intrínseco do saber ocidental.
          Que a firma americana não põe o problema limitado pela oposição pessoal e impessoal, mas sim a contrafacção do legal porquanto a análise da sua atuação vai para a sociologia do crime - revertendo a suposição de que crime é predominantemente o canteiro do gueto; que o capitalismo não é a burocracia no centro sem ser antes o intervencionismo ilegal dos serviços secretos da super-potência nas margens, agindo como representante do capital internacional e não apenas estadunidense; são esses  resultados das pesquisas empíricas tanto quanto os que permitem sem dúvida afirmar que não há inferioridade de performance intelectual ou física, suposta de origem étnica ou de casta ou o que for, que a boa alimentação, educação ajustada às necessidades culturais históricas, higiene e saneamento médico não eliminem.
         Pode ser que essas performances não devam ser computadas de um ponto de vista generalizante - pois o talento musical é tanto um talento quanto a habilidade em matemáticas. Mas ambos estão numa relação com o cultivo, com o acesso à instrução, com a ausência de barreiras psicologicamente inferiorizantes (recalcantes). Além disso, o antagonismo crucial se posiciona agora entre ecologia e tecnologia, o que está para ser integrado à questão do Poder que se tornou geopolítica, não podendo ser creditado a uma necessidade inerente a algo como o capitalismo em si. O limite da sociedade do bem estar, na exterioridade do a priori da dominação geopolítica, em vez de qualquer coisa inerente à "modernidade"  parece ser o controle numérico da natalidade, com vistas à evitação da explosão demográfica uma vez que essa é a sociedade da satisfação das necessidades e da pesquisa médica, logo, da elevação da expectativa da longevidade acima do esperado pelas sociedades do passado conhecido - o que demonstrou suficientemente Yves Lacoste.
          Essas informações empíricas são suficientes para implicar a ruptura para com todas as bases da ciência social oriundas de uma concepção centrada do Saber, isto é, que ainda não o tematizam como constituindo-se, enquanto moderno, numa imbricação às margens, numa dependência constitutiva da sua apreensão dessa "exterioridade" ( como anterioridade, como originareidade, como "mesmo", como "outro" racial, etc.) que está sempre sobredeterminada por uma política, ambos um Logos.
             Com relação a esses problemas, é que se torna importante a releitura dos textos ora interpretados como formadores dos logoi que se superpõem ao longo da dominação geopolítica que se exerce tanto no centro quanto nas margens, como discursos do assim idealizado/produzido Sujeito da história: a oralidade romântica, a sádico-analidade positivista, a ambiguidade fálica funcionalista, o descentramento genital (pós)-estruturalista, mas também o recentramento como uma consequência não prevista no itinerário freudiano, ora duplicando a cena do ex-centramento que enuncia a ruptura em relação a qualquer centralidade do Édipo.
           Aqui, como já assinalei, apenas tencionai interpor algum enunciado dessa problemática que possa talvez ser pertinente aos encaminhamentos próprios da sociologia. É também somente nesse intuito que prosseguem as considerações.
           Marsal  apresenta a teorização de Weber como “uma concepção pessimista da vida social”, generalizando, a meu ver, desde as preconcepções de Wright Mills– como se denota no movimento textual. Na expressão de Marsal, assim como Mills ampliou o conflito de classe para o do poder – entre dirigentes e massas, não mais apenas entre empregados e empregadores – Weber teria suposto a sociedade como “jaula de ferro” burocrática, uma teia que envolve os seres humanos de modo sempre mais totalizante e irrevogável, como na “visão da velha luta do indivíduo contra a sociedade".
        Espero ter ficado claro que na minha concepção, o que Weber assinala de inaugural em teoria social, e aquilo pelo que o resultado histórico de sua influência recente na França pode ser rastreada numa imbricação a Nietzsche, é justamente a elisão da preconcepção do indivíduo. Não há um senso comum intematizado do que é que está lutando contra a sociedade no sentido de algo que não se reduz a ela, que lhe é intrinsecamente estranho e autônomo.
          Isso não implica imediatamente reduzir a subjetividade ao social – como no marxismo, onde a subjetividade ou é a ilusão burguesa do indivíduo, ou é a realidade da classe social só ela histórica ou real. Mas sim estipular como tarefa da sociologia reconstituir o que, em cada caso histórico a examinar, a socialização implica como o seu elemento – não “tirá-lo” da psicologia ou, pior ainda, do senso comum a que adere o teórico. É preciso demonstrar como se reconstituiu o vínculo social como relevante para o desenvolvimento do exame sociológico de certo entorno considerado, e isso, em Weber, é o que se define em torno das questões a propósito do “significado” (Sinn).
         O requisito dessa heurística weberiana, depurada das interpretações generalizantes,  é que não há sociedade generalizável, nem, por conseguinte, categorias universais pré-conceituáveis desde a observação de cada sociedade histórica. No entanto, como observamos, na crítica social que na Europa, mas geralmente não na França devido à preminência de Durkheim, foi típica da metade inicial do século XX, é comum essa interpretação de Weber como um defensor da ação tradicional ou como um crítico da burocratização do social típica do capitalismo. 
        Quanto a isso, parece-me, o que não se observou geralmente foi, primeiro, uma certa ambiguidade de Weber na apreciação do fenômeno do capitalismo – o que não afeta o que me parece ser o firmemente postulável da sua ruptura teórica, como já assinalei. Mas também o eurocentrismo desse tradicionalismo – o modo como não se considerou a irredutibilidade do processo social nas margens, ou mesmo, as condições específicas da sociedade de massas. Isso esteve relacionado, ainda por cima, ao reducionismo ideativo da fenomenologia.
        Assim, o que na pós-modernidade se tornou visível é ser muito complexo postular a ação por costume ou por valores, como o que se deve requerer contra a “coisificação” do comportamento, quando se quer superar justamente o conservadorismo do comportamento social prescrito – por exemplo, quando é o caso do conflito de gêneros sexuais, étnicos, etc. O problema é que a oposição construída – tudo contra o “racional” – teve por alvo apenas a concepção positivista de racionalidade, quando os problemas sociais, culturais e epistemológicos, extrapolam consideravelmente tal construção.
           O próprio Weber deixou-se seduzir por um certo eurocentrismo, o que se pode notar na sua análise do tradicionalismo como algo que, por um lado, está relacionado ao patrimonialismo das aristocracias, mas nos EUA seria prognosticável para quando o país amadurecesse sua experiência sócio-econômica com o passar do tempo. Ora, se sabemos já que esse não foi o percurso histórico na América, inversamente correspondendo à elevação ao status de super-potência capitalista empresarial, os textos desse exame do tradicionalismo (Capitalismo e sociedade rural na Alemanha; O caráter nacional e os junkers) surgem ambíguos em relação àquele onde o tema de Weber é o capitalismo como ideal-tipo racional objetivo de empresa (História geral da economia, cap. IV) – temos a tradução na edição d'Os Pensadores.
             Quando se trata do tradicionalismo, Weber parece pensar um entorno sócio-europeu autêntico. Ele defende, por exemplo, os legitimistas contra o bonapartismo, em história francesa, explicitamente como quem defende o que corresponde ao socialmente histórico e representativo contra o aventureirismo ou o oportunismo demagógico às expensas das massas. Mas, quando se trata do capitalismo, a ação racional objetiva é tematizada como algo não apenas intrínseco a esse regime econômico, mas como algo racional por si. Se lembrarmos que Weber estava concomitantemente defendendo um ponto de vista na controvérsia epistemológica de sua época, vemos que por racional objetivo ele definiu a ação com que estamos nós envolvidos, por exemplo, agora, isto é, aquela que localiza a cientificidade.
           Isso é um pouco relativizado por Raymond Aron – ele entende que Weber optou pela cientificidade, na base de que a ação do cientista é racional objetiva, mas que resta uma base de valor pelo qual o objetivo da ciência, a verdade, está sendo positivamente valorizada. A ação científica seria uma combinação de ações racionais, objetivas e valorativas.
            Robert Gorman salientou mais o aspecto da racionalidade objetiva, quanto à posição epistemológica de Weber. Assim, isso influi também na própria construção do modelo ideal-típico, pois começa-se por esboçar o modelo racional da ação para o comportamento observado, e é na medida em que o observado exibe discrepâncias em relação ao modelo, ao que seria logicamente esperado que ele fizesse dado que seus objetivos são tais como já postulamos, que o cientista social deve construir modelos alternativos de conduta.
            Cabe notar que esse liame lógico não está predeterminado pelo observador, mas deve ser avaliado pelo conhecimento do ator. Ele atua racional-objetivamente sempre que utiliza o que sabe ser logicamente depreensível como resultado de sua ação com vistas a precisamente esse objetivo, não quaisquer outros. Mesmo que seu conhecimento seja inadequado aos fins, e ele suponha que agindo de certa forma atingirá certo objetivo quando essa forma não conduz de fato a isso, ele está sendo racional pelo modo como estrutura a sua ação – subjetivamente, poderíamos acrescentar, mas é de se notar a especificidade do uso desse termo.
           Pareto, por exemplo, como observou Aron, supunha, inversamente, que poderíamos designar não-racional uma ação desde que ela não conduzisse, por inadequação causal, ao objetivo. Para Pareto, trata-se de “racionalização”, não de racionalidade, quando agimos devido a certa necessidade, mas explicamos a ação com base num motivo alheio a ela, um motivo ideal, nobilitante, mesmo que estejamos supondo esse motivo como logicamente conduzindo à satisfação dessa necessidade, em vez do que realmente fizemos, que foi apenas satisfazê-la por meios materialmente adequados. Nesse caso, fantasia-se a necessidade mesma, como "servir a Deus" em vez de simplesmente acumular proventos do trabalho material. Creio que isso afeta a teoria da ideologia marxista, que seria mais parecida com os “resíduos” (necessidades) e “racionalizações”(explicações idealistas) de Pareto, do que com o ideal-típico weberiano.
             Em todo caso, o importante é salientar, como Aron, que Weber entendeu a ciência como “um aspecto de racionalização característico das sociedades ocidentais modernas”. Com isso, Weber avançou o que depois foi tematizado como sociologia do conhecimento – ele entendeu a sociologia como um produto social historicamente singular, ligado à sociedade industrial, ou mais geralmente ao processo histórico de racionalização que corresponde ao moderno-ocidental.
               O que complica consideravelmente a redução de Weber ao tradicionalismo. Ele de fato imbricou direito constitucional “canônico”, burocracia como racionalidade empresarial, e racionalidade científica como aspectos definidores da modernidade, isso de modo que não parece de forma alguma que ele quisesse defender o que opôs a cada um desses aspectos, o ordálico e o supersticioso do direito e da economia nos antigos estatismos, a conduta preconceituosa ou a priorística com respeito ao objeto do saber.
             No entanto, quando se trata especificamente do capitalismo, parece que mais correto seria supor que Weber não o tematizou, naquilo que extrapola a seca descrição ideal-típica, por si, mas no interior desse tema mais amplo, o da racionalização como processo geral da modernidade. Como notou Aron, Weber afirmou que a sociedade moderna tende, na totalidade, à “organização zweckrational”, mas sendo assim “o problema filosófico do nosso tempo, problema eminentemente existencial, consiste em delimitar o setor da sociedade onde subsiste e deve subsistir uma ação de outro tipo”.
            Esse enunciado de Aron, contudo, me parece bem contraditório com o que ele mesmo afirma de Weber um pouco mais à frente, onde se trata das oposições entre este e os parâmetros durkheiminianos e marxistas. Eu ressaltaria imediatamente, quanto a isso, a oposição que o modelo da ação de Weber institui em relação à ciência social positivista.
           Para Frazer, tipicamente, a magia é uma ciência primitiva. O selvagem opera por meio da magia assim como o cientista por meio da experiência e sistematização de dados, apenas aquele desconhece esses meios seguros de se obter o resultado. Mas, desde Weber, tornou-se consensual na ciência social a impropriedade total dessa abordagem. A magia é um outro tipo de ação, com base numa motivação precisamente não “racional” nesse sentido de nexo lógico e prático dos meios aos fins. Ela envolve uma atividade cujo meio é o símbolo, de modo que a relação ao objetivo não predomina sobre os meios; mas os meios, o ritual e a tradição, são tão importantes quanto os fins, como se depreende da observação, quanto a isso, de Beattie (Antropologia social)..
         Poderíamos até supor, como Beattie, que para certos casos, os fins são criados pelas necessidades rituais, isto é, para que se cumpra aquilo a que os símbolos servem, a expressão deles mesmos enquanto algo que circula tipicamente na cultura. Mesmo que isso ainda pareça um tanto reducionista, em face da problematização inconsciente que é como se estabelece a objetualidade de forma que um valor possa meramente ser assim postulado, em vez de supor que a expressão a que os símbolos servem é universalizável de situações concretas, vemos que já se está num parâmetro weberiano quando se pode tematizar a alteridade da cultura. Vemos, em todo caso, que uma ação de tipo mágico não está para o desempenho racional do seu objetivo, assim como uma postulação ilusória da causa para a não-consecução imediata deste, nem como uma mera racionalização estaria para a consecução.
             Ora, tornando a Aron, ele notou que Weber se opõe a Durkheim, primeiro por coibir terminantemente o que este supunha o objetivo da ciência social, a saber, a generalização a partir de dados históricos, ou a postulação do dever ser do social em geral. Mas a Marx, Weber se opõe por que coíbe à ciência social postular o que será o futuro da humanidade. Ambas as posições se chocam, portanto, com aquilo que foi dito antes, pelo que a questão filosófica em Weber é o dever ser da ação social.
         Aron desenvolve esse tema, de certo modo, relativizando-se um pouco a contradição inapercebida no seu texto, ao notar que Weber esteve pessoalmente entre a ciência e a política, e que o nexo desses horizontes constituiu o centro de sua “reflexão filosófica” - quais seriam os vínculos de solidariedade e independência entre ciência e política, eis a questão filosófica fundamental.
        Mas isso parece aproximar-se do que viemos a designar “sociologia clínica” - como referencial dos problemas sociais - ao invés de “filosofia”. A meu ver, Gorman entendeu com maior amplitude o viés weberiano ao notar que ele é muito mais “voltado para o lado empírico para poder tratar com profundidade dos problemas filosóficos importantes”. Não obstante, se Gorman supôs acertadamente que há uma “qualidade paradoxal” nas concepções abstratas de Weber, como liberdade e alienação, ele julgou não haver propriamente definição de “sentido”, por que não havia uma de “subjetividade”, em Weber.
        Ora, de fato, definição filosófica não há, mas sim operacional, estritamente sociológica, ou seja, como já observamos, devendo-se positivamente evitar a filosofia nesse caso. Gorman não deixou de notar que, dado tal inexistência, “em teoria, os construtos ideais de Weber são capazes de desempenhar a função dupla de preservar a integridade subjetiva de cada ator e satisfazer os requisitos empíricos do método científico”; mas ele supõe que isso não resolveu a dificuldade, tendo apenas predeterminado o resultado, e sendo assim, “as cartas já estão marcadas desde o começo”.
          Poderia ser o pós-estruturalismo, um verdadeiro salto à frente quanto a isso. Não por que tenha fornecido uma teoria do sentido ou uma do sujeito, que pudesse se amoldar melhor que a de Husserl ao que a sociologia de Weber requisitava sem poder proporcionar por si. Mas porque, inversamente, apresentou-se como uma filosofia anti-metafísica real como a de Nietzsche, não apenas presumida como a de Heidegger – cuja leitura de Nietzsche, aliás, foi verdadeiramente infeliz.
           Isso, por que o pós-estruturalismo estabeleceu o limiar da crítica da subjetividade, em vez de apenas tentar solucionar a questão de se ela é postulável como “produto de instintos do tipo freudiano, como determinantes biológicos ou ambientais, ou como ações livres e espontâneas de um ator desembaraçado”, conforme as opções que Gorman listou, ajuntando que o mais provável é que Weber tenha mais se identificado com esta última, se bem que não se o possa definir.
           O nexo do pós-estruturalismo, efetivamente poderia ser com o inconsciente psicanalítico, mas justamente desde Lacan é o caso da recusa dos "instintos", após o que o pós-estruturalismo poderia ser lido como o equacionamento do Poder na teoria do inconsciente, de modo que o simbólico já não poderia ser a priori a finalidade do processo do sujeito, mas o nó problemático da teoria social. 
           Em todo caso, a crítica de Gorman à fenomenologia como uma visão dual que predetermina o subjetivo pela objetividade, em vez de ser um subjetivismo autêntico, parece-me autorizar deduzir que é por um viés assim que ele argumenta – o que seria o autenticamente “intencional” como parâmetro de uma fenomenologia expurgada das limitações ressaltadas não só na teoria social de Schutz, como nas implicações da fenomenologia em Heidegger, Sartre e no marxismo. Mas esse volume consagrado a essa crítica não desenvolve a positividade dessa teoria social almejada, limitando-se a considerar esse “intencional” fenomenológico, o limite do saudável como intenção de justiça social.
            Na verdade, a impressão que tenho quanto à recepção de Weber é invariavelmente a de que cada um procurou complementar filosoficamente a sua utilização, por um lado, ou então aproveitar-se do seu viés empírico para funcionalizar, isto é, sistematizar, a sua sociologia, por outro.
            Assim, quando nem uma, nem outra dessas tendências pode ser suplementada, como quando o funcionalismo norte-americano teve que confrontar a crítica social para integrá-la nos seus modelos sistemáticos, mas com isso tendo que defrontar-se ora com a impossibilidade de preservar as premissas, ora com a compulsão a radicalizar o conflitivo, então abandona-se o modelo todo como se fosse ele a fonte da inadequação metodológica, quando são os limites epistêmicos solidários a um ambiente funcionalista, fenomenológico, em todo caso, totalizante por um lado e ideal-reducionista por outro, o que impede a equalização do elemento mais importante, o devir e a alteridade – aquilo que então tornou a ser considerado desde a ruptura do estruturalismo para com esses parâmetros da metade inicial do século XX. 
           Não que qualquer produção teórica desde o Romantismo, sequer possam desenvolver-se na exterioridade total a esse elemento. Mas sim que o sentido desse desenvolvimento, como abstrações dele, ou como sua tematização explicitada, é o que interpõe o processo teórico contemporâneo como tópica geo-egológica.


                                                                                                                      Livro 4

        8 -
    
          Inversamente à suposição de As palavras e as coisas, onde a definição do a priori epistêmico da modernidade, iniciando-se no século XIX, se enuncia como o sistêmico na ciência - objeto quase-transcendental, não mais generalizável a um todo da realidade - podemos observar que o percurso do século XIX não foi premido pelo desejo de restaurar esse todo como "representaçaõ", o qual se expressa como verdade profunda do que então não poderia ser senão pseudo-ciência, as humanities. O que nos permite localizar o Romantismo como a ruptura genética da contemporaneidade, não é uma ausência do real vindo da soltura das ciências em relação à filosofia. Não se indagou, antes, o que permitiu a transformação que subsumiu a filosofia ela mesma a ser um pensamento do real científico. Foucault confunde ciências humanas e filosofia.
         O que permite conceituar o Romantismo como essa ruptura é um outro-real dado a pensar pela ciência da biologia, mas o que subjaz à transformação tal que esse outro-real desloca substitutivamente todo o real antes pensado como metafísica ou aufklarung, é o que deve explicar porque, desde esse momento, a filosofia não pode mais pensar sem pensar-se sobre o fundo sobre o qual ela (se) pensa. Esse fundo sendo tanto a materialidade histórica da cultura, como isso que é preciso conceituar como elemento da sua produção. Ou seja, esse fundo sendo o humano como o produtor da irredutibilidade na cultura. A alteridade pensável como cultura na margem implica que o pensamento não é uno consigo mesmo no centro, ou sob qualquer aspecto que se tenha do Homem. Implica que haja o inconsciente no pensamento, e que seja ele o produtor da pluraridade na cultura tanto quanto desse pensamento que enuncia ou deve enunciar o seu pensável como filosofia.
           Aqui o escopo não seria desenvolver essa história da filosofia contemporânea, mas sim notar que o outro-real dado a pensar pela ciência da biologia, é o real orgânico que impede aquele a priori de todo pensamento ocidental até aí desde o platonismo, a saber, o dualismo que exprime variamente uma lógica de fundamento-suplemento, espírito-matéria, tal que o suplemento só é pensado para que o fundamento seja expresso como o que permite negar a sua aparência ou insistência no pensável.
          Na verdade, pode-se objetar que o platonismo seja um dualismo, já que ele nega de um modo que já a um Aristóteles não poderia ser aceitável, aquilo que é em devir ou a matéria. Mas se somente desde o século XVII, o dualismo chega a uma autêntica expressão com o mecanicismo cartesiano, com a matéria sendo afirmada uma realidade ainda que puramente sem-pensamento, todo o percurso até aí contém essa paralógica que se constroi como linguagem filosófica na transposição da oposição espírito-matéria à oposição de essência-aparência. O dualismo cartesiano não se furta, por outro lado, a essa oposição, em todo caso, a matéria é o que é dado a pensar a um pensamento que só se concebe - sem pensar sobre isso - o seu oposto e assim tendo sua enunciação nessa oposição e no modo como ela é construída, a fim de suprimir o oposto no idêntico, a aparência, no pensamento.
          O real orgânico, e por conseguinte evolutivo, é uma revolução científica, mas para ser uma revolução epistemológica no sentido histórico do termo, ele deve interferir  com o dualismo nesse sentido de que a natureza não mais se opõe à inteligibilidade imanente. Por outro lado, ele se espraia à urgência do pensamento da alteridade na cultura, pois essa materialidade do histórico, isto é, o fato de que não se pode mais generalizar como Kant o sentido da história ignorando a autonomia dos seus processos, está podendo ser atribuída a um novo ser concebido como humano, esse orgânico-evolutivo de modo que a enunciação da alteridade no saber funciona como autenticando uma função egológica desse saber, uma vez que o saber não mais pode  se colocar frente a toda natureza como anulação da sua inércia constitutiva (o ante-cristão, o selvagem-natureza, etc.).
            O real orgânico implica a filosofia do século XIX como um pensamento da ciência que o expressa - inicialmente apenas como transformismo biológico (Romantismo), depois agregando-se ao orgânico a regulação da física da energia e da entropia (Positivismo), isto é, uma regulação econômica como na expressão de Bréhier. Esse o sentido do monismo de Haeckel: estritamente, uma defesa do evolucionismo.
          É interessante como o termo mecanicismo usado para o período positivista como algo que se opõe à visão holista da ciência desde os inícios do século XX ou na verdade desde a altura do simbolismo, de fato precisa ser bem especificado porque não se trata de modo algum do mecanicismo clássico, aufklarung ou cartesiano. Se em ciências mecanicismo positivista significa a explicação puramente mecãnica da fisiologia, os mecanismos são a forma pelo qual se trata de interpretar o organismo, esse impensável anteriormente ao século XIX. Em filosofia, o positivismo é estritamente um organicismo anti-mecanicista, como em Laas e Dühring, mas como realidade absolutamente auto-regulada. É quando se desloca a pluraridade de mecanismos pela centralidade do que se postula como sua coordenação, que esse quadro positivista se transmuta no rumo do funcionalismo, mas o orgânico continua sendo o Real dado a pensar.
          A leitura de Bréhier para o período que se desdobre entre positivismo e funcionalismo, permite notar bem como na enunciação dos estudiosos o pensamento está numa vertente duplicada, entre o orgânico e o social. Já vimos como essa duplicação é relativa, pois o orgânico é o real como natureza auto-regulada imanente, portanto o social é ele mesmo organicismo assim como a psicologia e seu problema de se há ou não uma subjetividade conceitualmente separável está se pondo porque não há o pensável intelecto puro. 
           Ora trata-se da mesma realidade que é por um lado biologia e física, por outro lado histórica e social, mas sendo a junção o homem como ser psico-fisico e social, e a tarefa do positivismo é eliminar as possíveis irredutibilidades conceituáveis entre essas abrangências para obter um sujeito integral que é ao mesmo tempo todas elas.
           Ou quando o conhecimento biológico e físico vai se tornando mais complexo, já não podendo essa imediatez ser assegurada, tratar cada vertente na sua especificidade, mas sempre dentro das mesmas premissas da funcionalidade. Quanto à função [f (x)], Bréhier mostra como desloca a causalidade explicitamente desde Mach, enquanto já com Avenarius  esse empiriocriticismo instala a função na inserção mesma do organicismo enquanto as enunciações do sujeito são efeitos do que no sistema nervoso está articulando as mudanças em função dos fatores reciprocamente antagônicos da excitação e da nutrição, ambos fatores do meio em que o organismo é pensável.
            Meu escopo nessa oportunidade, ainda que tenhamos repetido o que já especificamos acima como o que opõe positivismo e funcionalismo,  é sublinhar a justeza de se postular algo como um a priori histórico da contemporaneidade, como fez Foucault, mas contrariamente ao modo como ele o resolveu, mostrar que cada um dos três ambientes que podemos enraizar desde o  século XIX  a partir do romantismo como o positivismo e o funcionalismo - são problemáticas articuladas por elementos novos introduzidos contudo num mesmo a priori que se expressa hístoricamente na emergência do romantismo.
           Assim, aqui o interessante é destacar que é a mesma terminologia que  se repete de Schelling a Durkheim, compactando o que interpõe o a priori entre "organismo e mecanismo", assim como entre "solidariedade orgânica" e "mecânica", mas sobredeterminando-se esses termos dessa forma historicamente a prioristica. Assim, do lado do mecânico não está uma natureza pensável fora do orgânico ou da sua atuação imanente, mas sim aquilo que o prefigura, o que deve agora se entender na dominância dele, mas que era apenas mais simples.  
          As ciências do humano como empíricas estabelecem os dados da alteridade cultural, mas como teóricas elaboram desde o inconsciente geo-egológico desse Saber a leitura de um real organicamente integrado de forma que a alteridade se faz função do ego desde o que o interpõe como sujeito na variação da sua apreensão possibilitada pela apreensão do outro. O pós-estruturalismo assinala o limiar pelo qual essa funcionalidade se rompe, e o pós-modernismo é o cenário em que a ruptura não pode tornar a ser teoricamente sobredeterminada. Pois, a ruptura só existe quando o saber do humano não mais se reduz a um Sujeito único de sua enunciação, e se enuncia desde o não-ocidental ou desde o ex-cêntrico que está numa interlocução multicultural, não centrada, com o saber.
          Aqui, portanto, se torna oportuno examinar dois momentos da geo-egologia, entre Marx e Durkheim, onde essas rubricas do orgânico e da alteridade se mostram estruturantes.


         
             Se o Romantismo é o locus da tematização das ciências do espírito, é em Hegel que se constitui a pioneira sistematização integradora da alteridade da cultura em termos de civilizações (Estados). Atualmente há uma problemática considerável em trânsito quanto ao modo de interpretar essa esquematização de Hegel e quanto à sua posição no seu  pensamento político. Isso permite notar como a questão é complexa no Romantismo.
           Em geral, na sua abrangência o que se explicitou foi a opção entre duas possibilidades. Ou chegar a estipular uma continuidade do progresso humano cujas etapas seriam tipificadas por cada povo em particular - se isso pode ser atribuível a Hegel, ou não, em todo caso é nessa via que se interpreta o historicismo herderiano por um viés conservador como o de Burke, posto que se a formação  é do heterogêneo, seria o caso de isso legitimar a hierarquia presente ou apreender a hierarquia subjacente do menos ao mais satisfatoriomente civilizado conforme os valores ocidentais, a priori supostos superiores, circularmente, devido à evidência do "progresso". 
          Ou circunscrever o nacionalismo espiritualista como na doutrina eslava da missão espiritual de cada povo, por onde também um viés mais autêntico de interpretação de Herder, pois o que ele teria realmente conceituado em termos de formação não era a hierarquia de classes, e sim a complexidade cultural. Mesmo nessa opção a condição de enunciação do saber é um requisito da superioridade do espírito, por aí restar intocado o dogma da superioridade europeia.
             O socialismo ante-marxista trouxe novo aporte a essa opção, por equacionar o trabalho na problemática da ligação do indivíduo ao sujeito, do ser orgânico ao ser social. Assim, essas duas posições do nacionalismo espiritualista e do socialismo ante-marxista, vão ter expressão na margem como veículos de projetos de nacionalidade sem o ônus do dogma da superioridade europeia, enquanto nessa mesma margem o romantismo estava também servindo, por esse ônus, de veículo discursivo da legitimação das classes investidas de dominância pelo imperialismo internacional.
            Mas desde o positivismo, com a emergência da sociologia e depois, da antropologia social (trabalho de campo), o parâmetro abrange a terminologia do "primitivo" tendo-se tornado classificatório mas de um modo articulado a uma verdadeira teoria social.
          Nesse ínterim, a antropologia de Frazer e Morgan, que já assinalei como escalonamento progressivo de conhecimentos técnicos , desempenhou um papel na sedimentação geopolítica tal que até em princípios dos anos oitenta, Gomes Penna ainda os utilizava para tratar a questão da mentalidade primitiva numa exposição em "história das ideias psicológicas".
          Escusado lembrar que isso já não era comum, como se pode ver por um manual de antropologia social como o de Beattie, que resenha o panorama anterior notificando a obsolecência daquele paradigma positivista, escrito na década de setenta. Não obstante, o fundo desse viés de classificação de selvagens (primitivos), bárbaros e civilizados é tão insistente no pensamento contemporâneo que o vemos reutilizado por Deleuze-Guattari com a reserva de que agora se estaria valorizando o selvagem. Creio que o senso comum, se interrogado, revelaria pensar ainda como os positivistas.
          O estruturalismo de Levi-Strauss, contudo, contribuiu para desfazer a ideia de uma mentalidade primitiva, nisso contra o estruturalismo de Piaget. Tudo isso está ainda em lítígio, e numa mesma teoria como a de Freud-Lacan, podem haver interpretações de que são sócio-evolucionismos, como penso que ela é, de modo que se não há de direito um inconsciente primitivo como o que postulam Deleuze-Guattari, há isso de fato seja como o narcisismo primitivo fora dos mitos do significante solar, seja como o superego das sociedades religiosas ; ou que não tem uma teoria social implícita.
           A psicanálise surge naquele contexto ambíguo de após o funcionalismo, e a meu ver ela está estruturada dentro da tópica geo-egológica como a sua enunciação mais explícita, de modo que o ego psicanalítico é na verdade o produzido por essa tópica.
              Assim, fora de um senso comum ou de casos um tanto anômalos, o que se estabilizou foram as sistematizações de Marx/Engels e a de Durkheim. Mas quanto a Marx/Engels, eles articulam uma teoria social com base ainda na classificação de Morgan - o que é explícito ao menos para "a origem da família..." de Engels. Aqui vemos como Marx estrutura o seu sócio-evolucionismo. Quando Durkheim formula a sua sistematização ele já está interpondo a sociologia mais restrita do século XX, tendendo porém à síntese da "coesão social", algo que deve existir tão concretamente quanto coisas materiais, o  que permite definir sociedade e tratar os seus fenômenos com base nesse ser da sua realidade.  Precedendo cada apresentação, coloquei um quadro resumindo-a. Na ordem dos textos, posicionei Durkheim antes de Marx como uma sinalização do menos ao mais influente, o que é um critério relativo ao cenário do pensamento social brasileiro.
            Mas isso talvez tenha algo de sintomático, pois se Marx está lidando com uma base empírica ainda positivista, anterior à que Durkheim já instala, é surpreendente notar que o viés da continuidade é mais deste que daquele, o que permite uma margem de manobra maior aos marxistas, para modularem a teoria de modo a minimizar o ônus da sua antropologia. Isso não resolve o antagonismo de marxismo e nacionalismo que é crítico quando se trata dos movimentos sociais nas margens, mas sem dúvida é o que permite que amálgamas sejam proponíveis. No cenário assim designado pós-marxista que tem sido associado ao pós-modernismo, quando se pretende integrar Marx ao novo imaginário político onde o conflito do trabalho não subsume a totalidade da problemática social mas deve ser pensado como integrando-a e de que modo, porém, creio que voltar a essa questão seria importante.
          Subsiste uma hesitação a propósito do papel de Durkheim no funcionalismo. Em sociologia, ele seria o seu introdutor. Para alguns, isso bastou para declarar que ele foi a influência de Malinowski e Radcliffe-Brown, ou seja, que o funcionalismo transitou da sociologia para a antropologia. Inversamente, já encontrei quem sustentasse que Durkheim transportou para a sociologia a influência dos trabalhos daqueles estudiosos em antropologia, e assim é da antropologia para a sociologia que o funcionalismo se expande na metade inicial do século XX.
        Na verdade, a publicação dos trabalhos funcionalistas de Malinowski, como também os de Radcliffe Brown é pouco posterior a Durkheim, mas o que se quis afirmar foi que a leitura de Durkheim como funcionalista se devesse à sistematização do funcionalismo enquanto tal, desde a publicação desses trabalhos. Se o próprio Durkheim tinha uma conepção totalizante do fato social, o que ele defendeu foi a positividade desse fato, por um lado; e a importância da base de informação empírica, por outro lado.
          Em todo caso, se inserir o estudo das ciências humanas na tópica geo-egológica não significa abstrair o sentido próprio das teorizações. Com Derrida na Gramatologia, vemos que a trajetória é dupla - por um lado, as desobertas empíricas da alteridade; por outro, as sistematizações que a encobrem etno-logo-centricamente.

       Marx/Engels - esquema descontínuo           














        1) primitivos - sem propriedade nem divisão de gêneros sexuais = Animal;
    comunismo promíscuo/ grupos de casamento duais/ grupos plurais / … estrutura social = estrutura familiar  =   excedente de produção / guerra dos sexos ) =
          =  2) civilizados - com propriedade e divisão de sexos (patriarcado) = Homem; divisão do trabalho (campo-cidade; material-intelectual) = família sindiásmica/ família monogâmica/ … estrutura social = hierarquia da propriedade
           Durkheim – esquema progressivo
              solidariedade mecânica = sociedades inferiores = segmentação (modelo anelídeo-segmentar)=
= horda ~ segmentos ~ clã ~ vila (território) ~ burgo (profissões) ~ cidade (divisão do trabalho) =
/casta sacerdotal / aristocracia /industrialização =
          = solidariedade orgânica = sociedades superiores (modelo animal-central)
       
   Evolução social em Durkheim :

         

           Entre Marx e Durkheim o que vemos é a acentuação de uma ambiguidade, paralelamente à comum inclusão da divisão do trabalho como o critério da evolução social ou civilização. Trata-se da forma como essas teorias precisam começar definindo a sua irredutibilidade a qualquer precipitação da subjetividade na sua transparência conceitual. Assim, a divisão do trabalho é um critério científico porque objetivo. Mas isso implica que nessa irredutibilidade psico-física do indivíduo, esteja de algum modo embutida a racionalidade que será a mesma capaz de explicar a evolução social.
       Como veremos, em Marx isso se viabiliza pela noção de boa e má representação, isto é, representações verdadeira e ilusória conforme científico-realistas ou fantasioso-ideológicas. Uma teoria do sujeito não pode não haver se trata-se de algo inserível historicamente na tópica geo-egológica, ainda que seu enunciado seja pela via negativa do que não faz problema. Em Marx, o  indivíduo psico-físico é o sujeito da representação no sentido objetivo-cognitivo do termo (não foucaultiano). Então do mesmo modo a realidade estará circunscrita à objetividade histórica, à redução objetiva do histórico. 
         Mas em Durkheim, a divisão do trabalho não é um critério da forma de propriedade. É um critério muito mais geral, de modo que se a forma de propriedade em Marx funciona como a ponte da generalização da divisão do trabalho à sociedade como um todo, em Durkheim isso não acarreta qualquer cisão ideológica posto que não há o intermediário conceito – ao mesmo tempo de mesma magnitude que a divisão do trabalho e de menor amplitude que ele, posto que degradando-se na ideologia – que é a propriedade.
        Lembrando que o funcionalismo é contemporâneo no seu nascimento, do naturalismo e de Zola, tornava-se agora mais complicado estabelecer a partição do bom e mau da representação cognitiva. O positivismo estava sendo criticado justamente por que ele se dispensava da metafísica mas não tinha uma epistemologia, tomando emprestado do empirismo que agora não mais autorizava essa extensão já que pragmaticamente modulado, crítico de si mesmo enquanto tradicional humeano ou à Stuart Mill. Nesse ínterim, está ocorrendo a linguistic turn, com Peirce e Boole por exemplo, de modo que toda a positividade da cultura desde o simbolismo deriva para a constitutividade do signo.
        Durkheim, contudo, não se demora na consideração do indivíduo na sua irredutibilidade ao objeto da sociologia. Inversamente, ele o toma como parâmetro da própria evolução social enquanto depurável progressivamente do sujeito socializado. Tanto mais há sujeito, isto é, confusão de si com o social, mais se está na região do primitivo.
          Ora, a divisão do trabalho, que é o oposto daquilo que possibilita a confusão, tem que ser critério racional se isso for evolução em vez de decadentismo. Logo, ela devia estar sempre atuando de algum modo. Como conciliar essas duas exigências?
            A progressividade do esquema mascara a ambiguidade do ponto de vista da consideração do indivíduo, posto que ele é sempre mais subjetivado tanto menos há divisão de trabalho, mas isso significa que ele não pode se apreender senão como indivíduo separado, na sua irredutibilidade às instituições que são infensas a ele. Por outro lado, ele é inteiramente não individuado, quando ainda não há o split público-privado, e ele só se apreende na homogeneidade da solidariedade mecânica, isto é, como integrado indissoluvelmente à sociedade. A divisão do trabalho é a inserção da burocracia, mas ela está atuante desde que qualquer fator desatrela essa integração.
       A família, como o núcleo mais integrado socialmente, mais primitivo, não tem nela mesma uma explicação do desenvolvimento. Durkheim se opõe aqui a Fustel de Coulonges. A consanguinidade não é o que se torna elo das sociedades primitivas devido a que algo mais se torna comum, a saber, a cultura – nesse caso, a religião. Inversamente, para Durkheim, trata-se da adesão comum e a consanguinidade fornece o laço imediato de proximidade que a presentifica, essa adesão de que a religião é uma expressão derivada.
        A família como noção cultural é portanto derivada da solidariedade mecânica exclusivamente noção sociológica, definida como o tipo de coesão vigente numa “estrutura social determinada” caracterizada como “sistema de segmentos homogêneos e semelhantes entre si”. O clã é um desdobramento do sistema familiar, portanto, os judeus são exemplos de solidariedade mecânica, ainda que eles apresentem um rudimento de organização que é a casta sacerdotal. A aristocracia europeia já está na solidariedade orgânica, e de modo mais especificado que a divisão do trabalho em Roma.
         A solidariedade orgânica, inversamente à mecânica, está mediada pela divisão do trabalho, então a coesão social não é diretamente a adesão do indivíduo ao grupo, como sujeito dos valores do grupo. Inversamente, ele integra vários papéis sociais dados como por definição irredutíveis à sua natureza de indivíduo. Assim, a estrutura social onde atua a solidariedade orgânica não pode ser simplesmente constituída de segmentos, como grupos que podem se tornar independentes, ela mesma tem que ser orgânica, isto é, apresentar um sistema de funções ou estrutura com uma função central. Estrutura é o mesmo que organismo, nesse caso. É a existência dessa função central que define a solidariedade orgânica, como o animal é aquele ser organizado por um sistema nervoso central que coordena todas as funções especificadas e autônomas do seu corpo.
         A oposição anelídeo/animal não é apenas metafórica. Durkheim pensa que as coisas funcionam efetivamente como nos fenômenos naturais: as sociedades primitivas são segmentares por que elas tendem a formar grupos e clãs, mas isso de modo que o que atua é a mesma disposição física dos anelídeos; enquanto as sociedades civilizadas formam um sistema orgânico com um sistema nervoso central, de modo que o que atua é a mesma estruturação dos animais superiores.
         E segundo o seu texto, a solidariedade mecânica interpõe sujeitos que aderem à instituição como um conjunto de alvéolos unidos por membranas que vão se tornando cada vez mais permeáveis até serem solvidas quando a divisão do trabalho impõe a solidariedade orgânica, de modo que eles agora são pessoas que agem e se entendem individualmente, separados uns dos outros. Isso, num outro texto de Durkheim, é manifesto como motivo de preocupação, pois se a divisão do trabalho implica expressamente desenvolvimento social, também significa maior isolamento dos indivíduos.
        Durkheim não era irreligioso, mas ele não postulava qualquer nexo cultural na estruturação social, tão somente formas de solidariedade derivadas do modo de organização do trabalho. A agregação “familial” primitiva é assim uma organização nesse sentido, mas obscurecida pela transposição da adesão ao plano pessoal da inserção dos indivíduos, por isso mais propriamente uma mecânica. A religião, contudo, é algo que reúne socialmente as pessoas, o que a sociedade moderna deveria cuidar de providenciar numa perspectiva sociológico-clínica, a fim de evitar o isolamento dos indivíduos que ele supôs fator de risco nas taxas de suicídio.
            A questão da alteridade cultural na sociologia tornou-se sempre mais investida, inclusive no parâmetro durkheimniano. Roger Bastide o ilustra, num estudo a propósito da sociologia da demência onde os temas do sonho, do transe e da loucura são interpretados na perspectiva sociológica do a priori cultural - pesquisando-se a relação entre ocorrências médicas e etnia negra, por exemplo, uma vez havendo o fator segregação racial ligado ao deslocamento étnico forçado da inserção originária da cultura do sujeito, e a movimentação histórica desse deslocamento.
             O pivô do aproveitamento de Durkheim em Bastide se torna portanto o fato da qualificação da coesão social, se entre primitivo e civilizado, mecânico e orgânico, a distância não é tanto temporal, e sim classificatória de modo tal que o não industrial, é automaticamente o mecânico. Tanto o primitivo é o que ainda está na margem, quanto há o problema da interceptação das sociedades pelo movimento da industrialização. Ora, de fato, Bastide enuncia que as solidariedades que Durkheim prescreveu não são só a mecânica e a orgânica, mas também a forçada ou colonial-escravista, e a anômica.
             Isso é interessante, já que por anomia,  ou conflito social, poderíamos interpretar o diagnóstico de Durkheim para o que interfere, ameça ou impede, a coesão social. Se esta é o fato da sociedade, então uma solidariedade anômica é um conceito paradoxal. Ainda assim, Bastide a integra para exemplificar os grupos sociais criminosos.
           Essas formas de solidariedade - ou a agregação dos conceitos de solidariedade forçada e de anomia - foram integradas por Durkheim no seu estudo sobre o suicídio de modo que motivos determinados dessa ocorrência , como também aumento ou minoração das taxas, podem ser discriminados conforme abrangências de solidariedades. Aumento anormal das taxas são reportáveis das solidariedades forçadas ou de um vínculo anômico. O escravo que não mais suporta a condição, por um lado; as ambições desmedidas e os projetos inalcançáveis, por outro lado.
            Bastide assinala ainda o estudo de Gaston Richard na revista fundada por Durkheim, L'Anné sociologique, em que se propõe o nexo da criminalidade com o tipo de solidariedade. A solidariedade mecãnica é exemplificada com a Russia dos tzares, onde predomina o crime contra as crenças comunitárias, tendo por alvo os símbolos personificados do poder político ou religioso. Na solidariedade orgânica, estudada pelos registros dos países industriais anglo-saxãos, a criminalidade se volta contra a propriedade e aos delitos de fraude.
          A solidariedade colonial (forçada), cujas fontes são registros dos países das Américas central e do sul,  tipifica-se pelos crimes contra a pessoa, ou por delitos sexuais: tipicamente assassinatos ou lesões. Quanto aos vínculos anômicos, são característicos das zonas do Mediterrâneo, como Espanha, Córdoba e Itália setentrional, cujo enraizamento histórico da criminalidade tem a ver com o debilitamento da autoridade estatal. Não se deve supor uma mesma reação a uma conjuntura dada, para cada um desses casos. Uma crise econômica, conforme esse estudo, provocaria mendicância na Russia, mas aumento dos delitos contra a propriedade na Alemanha industrializada.
           Bastide empreende a tarefa de testar a hipótese da utilidade de aplicação da qualificação da solidareiedade no estudo da enfermidade mental, uma vez que ela define na sociologia de Durkheim um dos tipos da patologia social, após o suicídio e a criminalidade.
            Ele encontra aplicação na oposição maior entre solidariedades mecânica e orgânica, desfazendo o mito paradisíaco, tanto quanto a crença dos primeiros pesquisadores de campo,  de que entre os primitivos não há demência. Tal como as demais formas de patologia social, podem ser discernidas também nas sociedades primitivas, e Bastide as agrupa como tipicamente distúrbios cuja forma é de "integração" - os transtornos mentais, os delírios, etc.,  propagam-se do indivíduo para o grupo, de uma aldeia para as vizinhas. Quando a região transita da solidariedade mecânica para a orgânica, a forma do distúrbio desaparece, mas pode se enquistar em famílias, grupos ou bairros proletários que tipificariam, segundo ele,  focos  da gemeinschaft (comunidade primitiva) na geselfschaft (sociedade moderna).
           O estudo aplicado à solidariedade orgânica foi feito com o objetivo de testar as afirmações de Durkheim a propósito do individualismo, ou isolamento, ser um fator de risco quanto à incidência da patologia social. Com poucas reservas, os estudos que Bastide registra confirmam a perspectiva de Durkheim. Aqui é a religião e  a conjugalidade, os fatores que conjuram o isolamento dos sujeitos nas sociedades modernas, assim como havia sido proposto por Durkheim. A questão dos judeus se tornou crucial, mas Bastide argumentou que não é porque a religião seria minimizável que há incidência de patologia social alta entre eles, mas porque são discriminados etnicamente.
            A novidade da abordagem se revela mais quando se trata da solidariedade forçada. Aqui é o próprio sentido da psiquiatria que se torna classificável em função dessa qualidade da coesão. As sociedades coloniais são opostas como paternalistas e racistas. Quanto às paternalistas, há dois tipos de psiquiatria, a dos brancos (psicoses constitucionais), e a dos negtros e índios (psicoses orgânicas e tóxico-infeccionsas). Aqui o dualismo significa a impossibilidade para os dominados, de asceder socialmente. Nas sociedades racistas, os transtornos mentais são explicados como efeitos da competição entre brancos dominantes e as demais etnias que no entanto, são discriminadas. Podem ascender, mas são frustradas socialmente por não obterem legitimação das suas conquistas. A  psiquiatria nesse caso conserva somente vestígios da distinção psicótica típica das sociedades paternalistas.
           Bastide reporta a aplicação do conceito durkheimniano de anomia pela psiquiatria estadunidense, ao que agrega como fator  pelo que várias neuroses foram catalogadas: a do manager-krankheit (neurose do executivo) alemã; a psiconeurose da renda, entre os americanos; o delírio ovbcessivo, e da desocupação. Essa aplicação tem campo vasto no texto de Bastide, mas aqui podemos salientar a aproximação que ele faz entre a "indecisão neurótica" catalogada por Kluckhohn como função da sobreexcitação contínua do  way of life norte-americano, e o conceito de "desmedida" que o próprio Durkheim havia conceituado como a ambição cultivada  acima dos limites da pessoa, instigada pela sociedade moderna, isto é, como patologia derivada do mesmo motivo.
            O estudo da patologia social foi aplicado na psicologia social quando se tratou de estudar grupos. As "cliques" seriam assim a patologia social afetando um grupo. São formações de indivíduos que se juntam dentro do grupo contra os outros integrantes - por exemplo, uma gang num bairro, ou aquele "grupinho" de alunos que se ajunta para "tramar" contra pessoas da turma, ou meramente para "falar mal" delas. Seria errado assim supor que as pessoas que se juntam dessa maneira, sendo capazes de fazer "grupinhos", são mais sociáveis que os outros. Na verdade, é o inverso, elas são anti-sociais, Há esquemas que classificam cliques - formações diagonais no espaço grupal, ou inversamente, retilínias.
          É notável ainda a utilização de Durkheim por Halbswachs. Partindo da classificação durkheimniana do suicídio correlacionada à coesão social - geralmente altruísticos na solidariedade mecânica, egoístico na orgânica, ou comprovadamente devido à anomia social quando há colapso da ordem social  - ele realizou um cuidadoso estudo da família como instituição social.



             Tendo assinalado a continuidade de aplicação da teoria de Durkehim, de modo que ainda na transição aos anos setenta se escrevia,  como J. Rex, que ele permanecia "talvez a forma mais viva da sociolgia francesa", torna-se importante destacar que também o limite do funcionalismo, quando o rise estruturalista se impõe entre Piaget e Levi-Strauss, envolve uma interlocução dos seus pressupostos.
             Com relação a Levi-Strauss, o desacordo com as interpretações funcionalistas do totemismo é a meu ver exemplar do contraste das duas abordagens como entre atribuição de tarefas da teoria social.
           Para Durkheim, trata-se de definir o fato social. Não se questiona que ele existe. Isso se tornou cada vez menos cabível, porquanto se exige a explicação daquilo que vemos "como" fato social, do que surge para nós somente como um efeito ou fenômeno, não na verdade como um fato em si.         
            Utilizando uma imagem um tanto simples, eu afirmaria que para os funcionalistas a sociedade é como um veículo e o que temos que explicar é de que modo se ajusta a ele o seu motor como função sua, junto aos demais componentes do carro. Mas para o estruturalismo trata-se de esclarecer o funcionamento dos motores de máquinas em geral, para então mostrar como esse funcionamento efetua o fenômeno em questão, por exemplo a de um grupo social ou uma coletividade. Não sabemos o que é a sociedade a princípio. O que nos parece já decorre do seu funcionamento.
            Assim, Levi-Strauss demonstrou que não há uma definição do totemismo que ou responda pela necessidade subjacente que ele atende, ou como expressão daquilo que Durkheim definiu em termos da religião primitiva ou fato social mais básico: o que se adora como o Sagrado é a sociedade em si mesma, e a compulsão que age sobre o sujeito participante do rito orgiástico expressa a coerção social dessa adoração não só primtiva, mas verdadeiramente originária do fato social. Inversamente, Strauss comprovou que não há um rito totêmico que seja descritível como comum às várias coletividades em que totens são assinaláveis. Em alguns lugares eles são objeto de adoração, noutros eles apenas são coisas corriqueiras; por vezes apresentam-se interligados a outros sistemas rituais, às vezes são o sistema cultual promeninente.
            Assim, por um lado, o totem não seria a mesma instituição nessas várias coletividades, mas instituições características diversas em cada uma delas. Por outro lado, eles são legíveis como linguagens que estruturam modos de extratificação social  intrínsecos a elas, isto é, marcam irredutibilidade dos grupos e as relações específicas entre os grupos. A relação entre instituição totêmica e extratificação dos grupos não é funcional como resposta a uma necessidade factual, é inconsciente como a estruturação de uma linguagem (langue, não parole).
            Ives de la Taille procedeu um contraste entre Piaget e Durkheim. Uma questão moral é interligável à teoria social de Durkheim, e como Piaget fornece uma teoria moral, tornou-se importante confrontar suas perspectivas. 
           O estudo de Piaget, Le Jugement moral chez l'enfant, de fato foi publicado já em 1932, mas seus registros a propósito da oposição que sofreu o seu enfoque psicológico "experimental" - na verdade, observacional como o que aqui estamos designando o empírico em sociologia - cobrem um período longo e até a vigência da celebridade de Merleau Ponty, Piaget relatando ainda que a estabilização no meio acadêmico dos méritos da sua "escola de Genebra" não foi imediata. A tradução brasileira desse estudo sobre a moral na criança foi reportada como dos anos setenta, quando o estruturalismo de fato suplanta o funcionalismo como uma tendência internacional.
           A meu ver, ainda assim os estudos piagetianos sobre esse aspecto da moralidade na criança continuam menos referenciados do que seu proveito para testagem de adultos - à exemplo da notoriedade de Kohlberg, que o investiu particularmente nesse intuito. Isso por que aceitar que as crianças não são o sentimento genuíno do ser humano é chocante para muitos. A oposição de Piaget entre a moral heterônoma da criança e autônoma que se torna a do adulto desde a entrada na adolescência, inviabiliza esse senso comum.
             A moral heterônoma da criança não só tem uma descrição irredutível, em termos do que podemos esperar como juízos efetivamente emissíveis; mas tem uma estruturação também irredutível, podendo ser caracterizada como uma coerção. Inversamente, a moral autônoma do adulto é uma adesão com bases recíprocas, em que o sujeito não se sente obrigado a obedecer uma regra, mas pessoalmente engajado na preservação da integridade do seu domínio assim como seu legislador. 










Em vez de coação, trata-se de uma moral de cooperação.

         Consequentemente os juízos a serem emitidos pelos sujeitos também são irredutíveis aos que esperaríamos das crianças. Não se aplicam sanções para castigar, como a criança faria, por desrespeito a algo como a autoridade em si. A moral autônoma de Piaget lembra sob muitos aspectos a burocracia racional-legal de Weber. Não há autoridade além do cargo-competência, não há uma ideia de poder em si mesmo, onde há trata-se de algo contrário à estrutura racional-legal. As sanções na moral autônoma são aplicadas para corrigir, de modo que o réu compreenda que o que ele rompeu foi o vínculo da confiança mútua, portanto, também não poderá obtê-la em relação aos parceiros. Não se educa uma criança para que, ao se tornar adulta, se torne ela mesma a autoridade ideal sobre outros, mas para que não haja fixações tais que a impeçam de desenvolver a moral autônoma.
          La Taille nota, quanto a isso, o hiato que separa as concepções de Durkheim e de Piaget, pois para aquele a moralidade precisava ser explicada como interiorização da cultura da qual decorreria o próprio desenvolvimento intelectual e moral dos sujeitos. Já conforme Piaget, são estruturas que o sujeito constrói pela auto-regulação de suas aptidões naturais e suas experiências com o meio, natural e social, aquilo de que decorre o seu desenvolvimento pessoal.
          Assim, as relações de coação, nesse enfoque piagetiano, são fatores "contraditórios com o desenvolvimento intelectual das pessoas a elas submetidas", na expressão de La Taille. Não obstante ser o característico da criança, não poderia ser investido pelo adulto, pois reforçam somente o egocentrismo de que a criança precisa, lentamente, se livrar, definindo-se como dificuldade de se colocar no ponto de vista do outro. Estabelecer relações de reciprocidade, eis o que permite ao jovem recém-entrado na adolescência, e ao adulto, acederem às relações de cooperação autênticas, o que não exclui a crítica como um meio caminho amigável entre a aprovação e o castigo.
         Essas relações são constitutivas da coexistência. Os participantes são visados como tendo que ter chegado a um acordo sobre as regras para que elas sejam dadas como legítimas e possam vigorar e/ou continuar vigorando se as circunstâncias mudarem na percepção do grupo na qual  regra existe.  As crianças de um grupo, inversamente, podem estar de acordo quanto ao indesejável atual de uma regra, mas elas acham que seria trapaça não observar a regra mesmo assim.
        Na moral autônoma do adulto, o equilíbrio entre as pessoas, como um ideal de coexistência, se atinge pela coordenação dos vários interesses, em vez de ser pela padronização de comportamentos. A diferença não compromete a coerência do conjunto, pois este consiste na renúncia, por razões compreensíveis aos sujeitos, de quebrar a confiança mútua. Essas razões são fundamentais, pois tornam possível que o herói minta solenemente para o antagonista com vistas a escapar de uma situação intolerável ou para salvar alguém, sem com isso estar sendo menos "correto". A coerção fornece um modelo de conduta, a cooperação fornece um método que orienta a ação.
            Esse exemplo do heroi é interessante, aliás, para ilustrar a irredutibilidade do comportamento moral da criança ao adulto. Pois se somente para a criança há uma autoridade acima da mera conveniência das regras, em compensação ela transita do que pensa ao que faz sem a menor cerimônia. As regras para ela são tão ontológicas quanto inexistentes quando se trata de agir. Inversamente, a moral cooperativa do adulto, oriunda da sua compreensão da necessidade da regra, implica que ele não a transgride se está na posse do controle mental de suas atividades.
            Assim,  a criança afirma que ao informar falsamente a alguém, de propósito, mas tendo esse alguém verificado a informação e não se enganado; ou ao informar falsamente a alguém por que se estava enganado, sem que esse alguém tenha verificado e portanto também incorrido em erro;  o primeiro é menos culpado que o segundo, obviamente sendo o inverso no julgamento do adulto. Não obstante a criança aceita a estória na qual o heroi mente para o antagonista sem questionar a autoridade do herói. Nós o aceitamos, inversamente, porque compreendemos a motivação moral do ato do heroi.
        É interessante notar, como La Taille, que tanto Durkheim quanto Piaget procuram integrar a ciência ao ideal democrático, apenas em momentos não idênticos de configuração desse ideal na autocompreensão social. Durkheim iria supor que a democracia depende da interiorização de normas modelares de comportamento que iriam estar transpondo o sagrado para o domínio da civilidade, enquanto Piaget afirma que os ideais democráticos incluem e dependem dos valores éticos como o respeito pela dignidade do outro, de modo que é a existência do método que orienta a ação que atua na estabilização da sociedade livre.
        Assim, inversamente a Durkheim, conforme Piaget, não poderia de modo algum ser a transposição do Sagrado ao nível da autoridade, mesmo civil, o que lastreia a democracia. Pois a transição da moral à autonomia, sua realização plena e incontestável, depende do ultrapassamento do laço da lei com a autoridade, a regra tendo que ser sentida como justa por todos aqueles que a observam somente enquanto são, ao mesmo tempo, seus legisladores.

           A reciprocidade tendo se tornado a palavra-chave em Piaget, vemos que isso afeta uma teoria do sujeito, tendo assim sido criticada por Lacan. O desacordo aqui está no modo mesmo como se considera "moral". Para Lacan, trata-se do modo como sentimos, estando o objeto do que sentimos em relação incontornável conosco enquanto nos sentimos (subjetivamente). Para Piaget todo juízo moral deve poder ser conversível numa proposição objetiva do tipo a = b.
          A meu ver, isso é verdadeiramente problemático em Piaget no sentido de que se tudo para ele é redutível ao epistêmico, ele produz uma teoria do "sujeito epistêmico", mas na verdade o que ele enuncia são auto-regulações estruturais, não uma teoria do sujeito. Não obstante há estudos, enunciados até por ele mesmo, que intentam convergir o seu "inconsciente epistêmico" e o que seria o "inconsciente afetivo" de Freud.
         A questão do desenvolvimento da criança ao adulto, para Lacan, não é uma questão de conquistar as estruturas necessárias para compreender (saber) a reciprocidade, mas para formar a operosidade da subjetividade, ou seja, o problema para a criança é que ela precisa realizar que o tu com que a tratam é o eu com que ela deve se referenciar.
           Lacan enuncia a tarefa teórica como sendo ancorar o acesso simbólico num inconsciente -linguagem cujo limite é o desejo, não a cognição: o seu desejo é aquilo de que precisamente o sujeito não sabe. Mas que é que a linguagem irá estruturar? Será a plenitude do simbólico, o domínio social das leis e das regras, o qual, como vimos com Levi-Strauss, por sua vez é sempre estruturado como linguagem.
          Ora, o mais básico da linguagem como operativamente facultada ao sujeito é que o sujeito não se fixa no mesmo (eu) ou no outro (tu), mas pracisa transitar, liberar o movimento de báscula do desejo que constitui, verdadeiramente, o eu e o tu como posições do consciente do falante, ao passo que para o inconsciente se relega a identificação sujeito-linguagem, quando se completa a maturaçaõ do processo, a criança não sendo precisamente capaz desse jogo livre da interlocução - assim como o sujeito patológico, a criança nunca se apreende verdadeiramente como um tu para outrem, portanto nunca aceita que o outro seja verdadeiramente apenas um tu para ela, por aí o diagnóstico de Lacan do ciumento proustiano como um neurótico que não suporta a apreensão da alteridade subjetiva da pessoa amada. A formação do inconsciente engendra o sujeito ético da consciência, este não decorre como uma formalização ou uma tomada de consciência conseqüente em relação a uma ideia a formar conforme uma capacidade cognitiva a vir a ter.
             Caso o sujeito não venha a constituir-se eticamente, para Lacan,  trata-se de um recalque. O sujeito egoísta, o sujeito sádico que impõe o castigo que ele mesmo, talvez, gostasse de sofrer, assim como quer ver sofrer, são sujeitos doentes, não casos a explicar de uma vontade, contudo, regida pela lei moral da razão, a qual somente renuncia por egoísmo à sua própria lei da reciprocidade universal, como seria o caso para Kant.
            Se aqui, como assinalei, o que está em foco são as relações Piaget-Durkheim, uma vez que para este a noção de coerção é fundamental ao conceito de coesão social, veremos que essa questão da não-formação ou da patologia interessa a todos os autores que estão sendo considerados. Pois, em Piaget trata-se também do sujeito-infrator como patológico, não apenas egoísta. Alguém que não acede a uma performance naturalmente esperável dele, não apenas alguém que poderia optar outramente. No entanto, a relação da infração com a sociedade, como vimos em Durkheim, teria que abranger um componente da variação da própria sociedade, o que nem Lacan, nem Piaget integram.
         Por aí, o estruturalismo exibe uma ambiguidade. Por um lado, Piaget sustenta que se uma determinada sociedade, como a primitiva,  é o que impede que o sujeito compreenda a reciprocidade, então a mentalidade dos sujeitos dessa sociedade será pré-lógica do mesmo modo que a da criança, ainda que não pelo mesmo motivo, no caso da criança sendo psico-físico,  no dos sujeitos dessa sociedade, como primitivos, ora parecendo que se trata de algo socialmente patológico porque a sociedade desenvolve fixações recalcantes do desenvolvimento do sujeito; ora parecendo que é quase-natural no sentido de haver evolução histórica da mentalidade do ser humano em geral, e assim o ocidente corresponde à maturação evolutiva do homem.
        Essa hipótese não me parece ser bem a de Piaget, porque ele é muito cioso da teoria evolucionista mais atual para sustentar algo desse teor, sendo que sempre o homo-sapiens é evoluído; então seria mais como no caso do recalque cognitivo do adulto, algo circunstancial, ainda que seguramente há evolução social desde que os motivos do recalque sejam removidos, haja democracia, desenvolvimento científico, etc.
          Piaget ilustra, por exemplo, o resultado baixo nos testes de inteligência de uma tribo, porque nela era ideal valoroso ser feiticeiro, em vez de ser racional ou pragmático; também ilustra outro tipo de resultado assim porque as crianças da tribo eram muito pobres, não tinham brinquedos nem nada com que se ocupar.
           Não obstante, isso poderia ser contestado. Pois, de fato, Piaget também tem uma teoria da história epistemológica do ocidente mesmo, na qual o progresso das performances exibidas desde a Grécia servem para testar a hipótese, nunca totalmente desautorizada por Piaget, de que essa história repete a do desenvolvimento das estruturas cognitivas da criança ao adulto.
         Em todo caso, a "mentalidade primitiva" ou "pré-lógica" das sociedades ditas simples não é a interpretação de Levi-Strauss, para quem o inconsciente sendo absolutamente universal, não podemos nos dotar de um critério para classificar a sociedade primitiva como participando uma mentalidade menos ou mais evoluída do que a sociedade moderno-ocidental, também não havendo uma sociedade primitiva única, mas em cada sociedade correndo códigos culturais próprios. Contudo, Levi-Strauss, rousseauísta, considera efetivamente as sociedades que teriam autoridades estatais, e particularmente a moderno-ocidental, sociedades de exploração, portanto menos satisfatórias - degeneradas? - relativamente às sociedades que então não sabemos como tratar senão como as que seriam originárias.
           No entanto, conjuntamente Piaget e Lacan exibem o desvio individual como patológico, mas não anômico. Para Piaget, a terminologia da anomia é somente aplicável ao que precede a capacidade de integração verdadeiramente social da criança, quando ela compreende a noção da realidade do grupo, não apenas a interação privada. Por todo o momento que antecede o período das operações concretas, isto é, por todas as fases anteriores aos sete ou oito anos, a observação de Piaget votada à questão da moralidade não encontrou praticamente ressonância. Conforme Yves de la Taille, ele designou essa condição como etapa da anomia.
           Interligando a moralidade e a sociedade, Durkheim conceituou um pensamento ético tradutível, a meu ver, em termos de um afeto que seria "heterônomo" na terminologia de Piaget. O problema seria como dar conta de uma adesão do sujeito àquilo que na verdade está a contrapelo dos seus interesses individuais. A adesão à moralidade só se explicaria, portanto, pela inculcação, via sociedade, de um sentimento do sagrado, como adoração a algo superior a qualquer ser individual. Como sabemos, o sagrado é tautológico em relação ao social que o inculca, pois o objeto da adoração é sempre, sob todas as suas formas, a sociedade mesma como realidade que ultrapassa o sujeito mas ao mesmo tempo o constitui, alimenta e integra.
             Ora, Piaget trata a decalagem entre os dois períodos da moralidade, coextensivos ao de operações concretas e de operações formais quanto à cognição, em termos de duas "éticas", a da coerção e a da colaboração. A questão importante é a razão dessa necessidade da lei moral que subitamente o adolescente se torna apto a compreender.
            Antes a criança, como vimos, não o deduzia, supondo o castigo numa completa disjunção à natureza do ato transgressivo, ao modo de uma "vingança", enquanto a sanção ética autônoma se propõe como um ensinamento, uma "correção". É curioso que a criança possa pensar o castigo-vingança como um instrumento de "ensino", mas apenas no sentido de que assim o transgressor não volta a cometer o ato desviante, por medo da consequência má. O que só o adolescente entrado no período de operações formais compreende, como o adulto, porém, é que o castigo surge para fazer ver ao sujeito o que foi rompido por ele, isto é, a confiança entre os membros do grupo quanto à não periculosidade dos atos dos outros. Ou seja, o seu próprio status de alguém que pode confiar nos outros, já que os outros não podem confiar nele.
         Há aqui, perfeitamente caracterizada, a Evidência no sentido piagetiano. Abraham Molles também lida com esse sentido do termo, ilustrando ser o caso quando o estudante transita de um estado em que a temperatura em que se funde o ferro é apenas uma informação e aquele em que todo o sentido do fato lhe é presente: nada menos do que todos os fenômenos químicos teriam que ser alterados se o grau de temperatura fosse outro.
        Nesse ponto La Taille observa que a posição de Piaget, ainda que por meio das estruturas cognitivas construídas, não pela via do transcendental, é mais próxima de Kant,  portantocomo a dele está sujeita a uma certa fragilidade. O estudo da moralidade em Kant, quanto a isso, se encontra bem esclarecido no estudo de Zingano. É verdade que o problema do mal foi de certo modo contornado por Kant ao jogar o domínio da realização para o lado da história. A lei moral da reciprocidade universal sempre estará presente no domínio mesmo dos fatos humanos, mas seu caráter necessário só se vislumbra progressivamente. No sincrônico o mal não pode ser totalmente negado, mas apenas desviado pela confiança no futuro, quando limitados os egoísmos uns pelos outros, os sujeitos não poderão mais renunciar ao seu caráter de legisladores.
         Assim também La Taille afirma em Piaget o hiato que já se entrevê com Kant. Pois, como Zingano notou que esse é o ponto obscuro na teoria kantiana, podemos sentir que entre a pura forma da lei e o domínio dos fatos onde se move a história o que há é um abismo. Ultrapassá-lo só seria possível pela fonte da heteronomia que é aquilo que Kant precisa a todo custo evitar para fundar sua moral autônoma, isto é, uma moral que não é a do sentimento, mas tão somente a da razão. Ora, o adolescente está cognitivamente dotado da estrutura que lhe permite compreender a necessidade da recíproca, mas ele o realiza, na prática? E, se não, como explicar, por uma teoria onde a moral decorre da necessidade da razão, o alcance dessa razão a um domínio que não é o seu, o da prática?
        Nesse ponto, porém, seria preciso retrosceder ao que Piaget está compreendendo como estrutura cognitiva. Lembrando que no sensório-motor, nos meses iniciais da vida, há inteligência antes do pensamento, nessa teorização a inteligência se conserva sempre como uma auto-regulação que envolve a prática, não pode existir inteligência sem prática. É um caso inteiramente oposto ao de Kant, e houve oportunidade para Piaget afirmar que sua inteligência prática se aproxima da noção de Marx pelo que não são ideias que impulsionam a prática, mas da prática é que os homens formam suas ideias que variam portanto, conforme variam suas práticas.
          Assim, supondo o exemplo do pôquer. Preciso do valor que poderá me ser entregue se trapaceio e sei que estou em condições de trapacear impunemente. Que farei? Ora, o enfoque de Piaget, de modo inteiramente não kantiano, não tradicional, a meu ver, iria depender de quem são meus parceiros. Suponho que sejam pessoas que estejam jogando com o valor que roubaram de uma instituição de caridade. Trapaceio e restituo o valor à instituição - supondo que a instituição mesma é honesta, o que nos tempos que correm pode nem ser o caso. Para Kant isso talvez fosse um ato moralmente condenável. Para Piaget, ao que parece, não.
        Mas suponho que sejam meus amigos de infância. Se trapacear como poderei olhá-los nos olhos, como posso agora? Não trapaceio,  a não ser, talvez, que eu soubesse que eles trapaceariam sem hesitar, o que repõe a questão da abrangência social da teoria, num parâmetro que não pode evitar ser sócio-evolutivo.
          Portanto, a questão é inteiramente relativa, a prática é mais complexa do que uma teoria formalista, mas é isso o que o pensamento de Piaget jamais foi. A prática está incluída na "razão". Um transgressor sistemático num meio honesto exibe um sintoma patológico: onde está o recalque? É ele capaz de todas as habilidades que o operatório formal supõe? É ele um "caso" no sentido clínico-psicanalítico? Como se poderia julgar o normal e o patológico sob um mesmo parâmetro de "certo" e "errado"? Essas questões não são facilmente resolvidas, ainda assim, e vemos que a contribuição de Kohlberg justamente inclui  a tematização do cultural potencialmente ampliando a teoria moral de Piaget.
         Mas compreende-se que não subsiste o problema da transição da lei moral à prática do sujeito social. Estruturado, o sujeito é eticamente destinado. A estrutura da evidência, que não cai do céu, mas é construída assim como a subjetividade epistêmica mesma, não pode ser contrariada para o químico, do mesmo modo que para a pessoa social.Em vez de coação, trata-se de uma moral de cooperação, porquanto o adolescente e o adulto se sentem igualmente legisladores. Eles prescreveriam a mesma ordem pois a consideram justa. A regra provém, portanto, não de uma autoridade suprema, mas da necessidade da coexistência. Nesse caso, repetindo, não vigoram sanções expiatórias, mas somente sanções por reciprocidade.

         
        Evolução social em Marx/Engels

           A crítica ao positivismo na base de que ele não apresenta uma epistemologia senão derivada do empirismo, na verdade não focaliza aquilo que inversamente a algumas reservas críticas, permite utilizar-se a expressão realismo-positivismo. Assim, em todo caso, o positivismo é um cientificismo, e isso inere a uma opção epistemológica, uma posição do estatuto da ciência que implica uma concepção do real.
         Há uma problemática ampla a propósito do realismo, especialmente em literatura. Tendo em vista que a realidade e uma concepção do real estão sempre implicados na realização estética, ora se nega que o realismo seja um estilo demarcável, ora se pensa que sua expressão histórica no século XIX é um artifício teórico, não algo de fato conceituável do exame das produções, Não obstante isso ser mais complexo em artes plásticas do que em literatura, por exemplo, creio que o realismo histórico não é apenas um artifício teórico, e que ele está relacionado à problemática positivista porque ambos são expressões de uma concepção  do real por eles definida, a qual não vemos coincidir com algo generalizável para outros cenários de época.
         Assim, ela pode ser bem conceituada pelas palavras de Marx a propósito de como e onde “cessa a especulação”: “É, portanto na vida real que começa a ciência real, positiva, a representação da atividade prática, do processo de desenvolvimento prático dos homens. Cessam as frases vazias sobre a consciência, devendo uma sabedoria verdadeira substituí-las”. Se a história não é mais “uma ação imaginária, de assuntos imaginários, como ocorre com os idealistas”, também deixa de ser uma simples “coleção de fatos” empirista.
         Aqui torna-se ressaltável o quanto toda articulação do passado só está sendo armada, no século XIX, com vistas a se obter uma concepção do futuro nesse sentido do que ser da sociedade industrial. É o juízo prévio geo-egológico,  de que essa sociedade é o presente indeslocável da humanidade, o que implica essa planificação ter se tornado constitutiva, para o bem ou para o mal, entre o comteano progressismo e o decadentismo da transição ao século XX. Um estudo voltado ao panorama das ideias e/ou da produção estética dessa época se beneficiaria desse exame, uma vez que toda a problemática da alteridade desde o Romantismo inscreve paralelamente uma leitura da modernidade assim como conceituada nesses momentos de época.      
            Como escreve Marx, em todo caso esse futuro deveria  livrar da “imundície” que era a promiscuidade do comunismo originário, que já sabemos ter sido uma ficção teórica na qual acreditou o marxismo, promiscuidade que o comunismo racionalmente planejado não iria repetir, e por aí entendemos por que a revolução soviética foi, afinal, muito conservadora dos preceitos marxistas; tampouco o comunismo equivale à “consciência de carneiro tribal” como aquele “início” que “é tão animal quanto a própria vida social desse estágio” , o que só podemos entender referenciado como o primitivo.
         Aqui Marx parece um tanto ambíguo, contudo. O homem sempre é animal frente à natureza, e é também sempre humano em sociedade; contudo, é só com o “seu desenvolvimento e seu aperfeiçoamento ulteriores com o aumento da produtividade, o aumento das necessidades e o aumento da população” que ele se eleva desde a “consciência de carneiro”. Ou seja, ele é ao mesmo tempo sempre animal e sempre social, mas somente animalesco antes do desenvolvimento que de um modo simplificado podemos ler como sinônimo de sociedade industrial, sendo “a massa de produtos acessíveis aos homens” o que “determina o estado social”, ou seja, o nível do desenvolvimento de uma sociedade.
         A questão se aprofunda, pois desde que estão sendo distintos os momentos ou pontos de constituição do humano desde a sua originareidade animal, essa constituição interpõe uma “relação dupla”. Os momentos são rigorosamente ordenados numa sequência: provisão de alimentos; provisão das demais necessidades; procriação (família); linguagem (consciência). Primeiro somos seres puramente necessitados de alimentos e mais coisas, e só após esse essencial/material estado de ser é que nos instalamos como membros da família, e ainda subsequentemente, da sociedade. Assim cada momento mantém com seu subsequente um certo desdobramento dual, como se os quatro momentos fossem na verdade dois pares.
        A “relação dupla” está referenciada na explicação do que une os três momentos iniciais. Pois está envolvida na sobrevivência material, a interação com a vida de outrem. Há aí “de um lado, uma relação natural e, de outro, uma relação social”. O quarto ponto é a “manifestação do elo materialista entre os homens”, por onde “achamos que o homem também tem 'consciência' ”. Creio que não obstante a segmentação do texto, a duplicidade natureza/história instala-se entre os dois pares que assinalam essa mesma dualidade. Marx referencia os momentos ora como “estágios”, ora como “aspectos” – ele até, quanto a isso, aceita “empregar uma linguagem clara para os alemães” e então é que põe entre aspas aquilo de que se trata em termos de “momentos”.
         Mas é bem nítido na sua argumentação, que ela depende de uma precedência, de fato ou de direito, do achar-se puramente necessitado como o mais originário do ser do homem, sendo dessa precedência que depende a ancoragem na realidade, na prática, na materialidade social, de todo o percurso do trecho.
          Ora, aqui temos um pressuposto não tão evidente quanto a exigência da realidade ser materialidade, que assim ancorada, se afirma. Pois, que somos necessitados do puro ponto de vista material, antes de nascermos numa família e numa sociedade, é um ponto de vista não necessário, mas arbitrário. Ninguém é coisa alguma antes de nascer, ainda que o que se queira referenciar é que tendo nascido trata-se de ter que ser alimentado. Mas é isso que está em questão, a saber, que trata-se essencialmente de ter que ser alimentado, de modo tal que tudo o mais possa ser agregado “depois”. Socialmente isso é falacioso, posto que muitas vezes não se deve a questões de abundância ou escassez a opção de alimentar uma criança.
        Obviamente, uma sociedade pode ser simbolicamente determinada de modo que seja para ela imperativo que qualquer criança seja alimentada ou que se proceda de modo consequente com o pressuposto de que o alimento é a essência material do homem. Mas essa sociedade não é mais ou menos paradigmática, no sentido de universal, que qualquer outra. É a compreensão do social em si como o que pode legitimar uma política intervencionista na sociedade concreta o que me parece comprometer o marxismo como uma epistemologia realista-positivista-cientificista que não apreende o seu próprio idealismo, inversamente atribuindo-o como um materialismo objetivo.
          Mas o que está em questão quando se trata de superar o paradigma da centralidade ocidental, é que não há paradigma algum que se deva colocar nesse locus. O estudo antropológico não prejudicado pelo etnocentrismo, e o caráter inevitável do intercurso social internacional por outro lado, impelem a outros requisitos que devem começar por uma reversão do cientificismo em prol da cientificidade. É nesse sentido que a estrutura precisa ser questionada, como Derrida notou, no caráter de jogo ou de centro no qual havia sido restrita; mas o critério pragmático do uso não deveria ser um recuo ao funcionalismo, uma naturalização ou banalização dos fenômenos em questão. É assim que em vez de começar pelo idêntico e pelo indivíduo, é preciso interpelar a ex-centricidade e a alteridade do signo, sendo o que ele interpõe as relações que engendra, não as identidades primeiras.
            Quanto ao modo de produção que conceituaria as formas de divisão do trabalho em Marx, eles de fato assinalam a evolução social com o capitalismo sendo o mais racional, antecendendo contudo, o comunismo como a resolução da aporia da exploração de classe.  Há assim estudos recentes, onde se objetiva conceituar os efeitosda interceptação  de modos de produção ante-capitalistas específicos, pelo capitalismo.  



          Como vimos, é somente após o positivismo que a linguistic turn se afirma como uma epistemologia do sistema ou da estrutura. Agora estamos notando o quanto Marx força o limite do positivismo, por já lidar com um sentido da articulação social, mas continua expressando a concepção epistemológica positista-realista que implica a redução psico-física individualista do sujeito, algo que é oposto ao modo como o Romantismo havia posicionado a questão do sujeito - enquanto oposto a indivíduo como o social ao natural. Ora, na atualidade, quando já se compreende a alteridade cultural como não abstraível na teoria social, perseverar no critério da articulação, como aquilo que de fato reduziu o potencial do historicismo romântico, impede que se desenvolva o que seria de fato útil como o destrelamento do historicismo do ônus geo-egológico.
        As articulações redutoras são apenas meios de redução da problemática da heterogeneidade e da alteridade. A meu ver não haveria nada de tão absurdo se alguém postulasse que a Índia e a Europa são sociedades de mesma estruturação por que ambas são sociedades produtoras de mendigos, pelo menos não mais absurdo que a classificação por divisão do trabalho. Aquele seria um parâmetro  tão arbitrário quanto qualquer outro, por ter sido destacado arbitrariamente como paradigmático. A arte moderna também julgou um tanto assim – como na beggar's opera e na auto-assunção de ser um gueux, por Stirner.
        Em uma amostragem de pouco mais que duas centenas de sociedades, não há um padrão que pudesse indicar qualquer classificação do natural humano, há somente formas extremamente variadas pelas quais exigências quanto a casamento são formuladas e cumpridas, incluindo margem de variação quanto ao não-cumprimento. Há sociedades em que isso é severamente punido, mas há sociedades em que é tolerado. Por vezes, é o próprio sujeito envolvido que cobra o não cumprimento socialmente tolerado – como no exemplo de Beattie, que usa o mesmo procedimento de Willems: uma esposa contrariada pelo marido pode retaliar por algum subentendido de que ela o está chamando de “pobre”, o que implica o fato de não ter pago por ela.
          Sempre, contudo, há restrição quanto a parentesco, de modo que não há sociedade que permita intercurso de pais e filhos como geralmente não há intercurso permitido de irmãos, as proximidades demasiadas são evitadas. Todos esses itens implicam comprometimento irreversível da antropologia de Morgan usada por Engels é também pelo que está implícito no texto de Marx.
         Quanto a tendências majoritárias, é muito mais comum haver restrição positiva quanto aos grupos inter-sociais que podem e que não podem casar entre si, e combinação dos pais quanto ao casamento dos filhos, do que, como na nossa sociedade, casamentos por amor e irrestrição na ausência de incesto fraterno. Mesmo assim, o comum não faz a regra, e há outros exemplos de sociedades como a nossa, seja enquanto o seu prescrito, seja quanto ao que ocorre na prática, o que é na verdade permitido. Nós não somos únicos – o que implicaria algum conceito de evolução ou decadência.
          O que concede a cada sociedade a sua feição particular é o modo como combina funções e exigências de seu cumprimento. Certamente a sociedade ocidental é mais complexa, mas isso pode ser mais por especialização de funções do que por alguma diferenciação básica na estruturação funcional.    
           Se o evolucionismo social ainda era preconizado por Talcot Parsons apenas por esse critério de maior complexidade, para muitos autores esse era justamente o índice do decadentismo. A antropologia e a sociologia mais recentes parecem decisivamente não adjetivas, não normativas ou prescritivas. A questão do bem estar social deve ser desvinculada dessa problemática sócio-evolucionista. Mas parece sempre menos passível de ser desvinculada da questão da contemporaneidade como locus histórico da abrangência planetária da economia industrial.  
        
          A necessidade de se desatrelar critérios sócio-evolucionistas da problemática da mudança social está assinalada na história da sociologia, conforme Bottomore, a partir das observações de W. F.Ogburn e Gordon Childe. As suas afirmações são ambas testemunhos de que o vínculo que vimos tão profundo no pensamento sociológico até aqui, entre mudança e progresso, estava sempre constituído pela ancoragem da sociologia na premissa biológica da evolução orgânica - conforme Childe, entre "legado social" e "herança biológica". Assim, é quando se torna consolidado que o legado social do homem não se transmite do memo modo que os fatores biológicos através de céllulas germinativas, que temos uma transição assinalável da sociologia a uma inserção mais atual. No entanto, minha afirmação é que essa inserção ainda não foi a que instalou o cenário pós-estrutural e pós-moderno, ainda que para um livro como o do professor Bottomore, lançado no início dos sixties, se expressasse como o ponto crucial da atualidade em sociologia.
          O importante quanto a isso é que o fator enunciado aí como o que caracteriza os modos de mudança social, é ainda a tradição, agora num sentido mais abrangente de "cultura" como algo oponível ao saber/poder. Bottomore inteliga assim as oposições entre  civilização e cultura (Weber), superestrutura e base econômica (Marx), com a de culturas não- material e  material (Ogburn). Ora, ainda que Bottomore enfatize que o tratamento da questão da mudança social facultado a Ogburn pela sua oposição, é diferente dos de Weber e Marx, ele nota que o que permanece em comum é a concentração "nas mudanças originadas na esfera da produção material, desde o advento do industrialismo moderno". Acrescenta ainda Bottomore ser "na verdade, nesse contexto que se fizeram os estudos mais recentes de mudança social."
          Assim, se o tratamento é voltado para o estudo de mudanças setoriais - na família, na estrutura de classe, no direito, etc. - o que se captura é o que muda a partir da constante "capitalismo" ou sociedade industrial.
          O que temos a meu ver, é uma ambiguidade, posto que pelo lado da antropologia, apresenta-se sempre mais a inviabilização de padrões funcionais generalizantes seja das totalidades sociais, seja das sociedades como elas mesmas totalidades; mas pelo lado da sociedade ocidental como o campo cultural no qual ocorre a produção do saber, sua consolidação capitalística internacional vai de par com a apreensão de si mesma sempre mais facultada como uma realidade em si mesma, oposta às demais realidades no tempo e no espaço que então continuam a ser designadas todas como um mesmo oposto a si - um mesmo "outro".
          Esse sintoma de uma auto-apreensão fixista de um si que se mostra cada vez menos capaz de apreender-se na hiância da heterogeneidade histórica e cultural, portanto, cada vez mais coisificador do seu "outro" - assim estereotipado -  se torna ele mesmo uma constante num determinado modo da apreensão da sociologia que foi típico da era "pop", isto é, interferiu com o rise da sociologia do terceiro mundo e com a sociologia do subdesenvolvimento.
          É interessante como Marsal, por exemplo, secciona radicalmente essas duas áreas de estudos. Quanto ao "subdesenvolvimento", está atrelado ao trecho sobre "mudança social". Não é definida como evolução social, de que não se fala, mas como "modernização". Assim é um capítulo da sociologia desenvolvido no interior do "funcionalismo de esquerda", aquilo que examinamos anteriormente como as produções de teóricos cônscios dos limites do estrutural-funcionalismo, mas apenas para completá-lo, não como uma ruptura metodológica.
            A modernização inicialmente é uma teoria do desenvolvimento onde os autores procuram uma fórmula, assim como vimos ser o objetivo de Marx, para esquematizar a transição das sociedades à industrialização, sendo então geralmente a história da Inglaterra o pivô da análise - assim o famoso "arranque", ou injeção de capital junto a uma força de trabalho ilimitada, como o fator crucial, segundo Rostow.
            É só desse contexto que surge uma teoria do subdesenvolvimento, para exlicar o "atraso" - assim, o subdesenvolvimento é uma "depressão" por falta de capital, o "arranque" sendo a solução para o atraso. Contudo, nos países assim chamados subdesenvolvidos, Marsal localizou um foco novo dessa abordagem com os autores tendo conceituado "dependência" e especialmente na América Latina havendo uma escola dependentista segundo a qual esse é um fenômeno inevitável implicado na desigual divisão de trabalho - o pacto agro-exportador de uma periferia compradora de produtos industrializados gerando um déficit entre o produto barato que se vende contra o produto caro que se compra.
          Então ele tematiza, somente aqui nesse trecho, o fato de que no terceiro mundo em geral a sociologia do desenvolvimento gerou o dilema que ilustrei entre Sodré e Fannon - a solução seria consolidar uma burguesia nacional ou, inversamente, postular que ela é impossível na periferia pelas razões mencionadas, sendo então a solução a revolução socialista imediata. Mas sempre conservando-se o pressuposto leninista de que o imperialismo é uma etapa mais avançada do capitalismo - portanto, nunca rompendo-se com o modelo inglês da época dos cercamentos, aproveitamento das regiões agrícolas para o cultivo de matéria-prima da indústria têxtil, para o equacionamento deste.
          "Pobreza" não é tratada aí como algo relativo ao equacionamento da questão do terceiro mundo. É uma parte da antropologia mais atual, como em Oscar Lewis, que se preocupa em definir suas características como algo que afeta coletividades que não podem ser descritas sob os parâmetros nem da classe média nem dos trabalhadores. Trata-se de uma cultura específica, com características discerníveis, o que Marx chamou o lumpesinato; não apenas uma situação histórica da economia de uma coletividade. Um país desenvolvido pode ter um período de depressão por uma fator de guerra, por exemplo, com sua classe média se tornando pobre, mas isso não implica que se configure nessa classe uma  "cultura da pobreza" com matricentrismo, trabalho infantil, ocupações não qualificadas, agiotagem, pouco uso de serviços públicos, e demais itens relacionados conforme os autores.
        "Modernização" é finalmente reconduzida por um modelo abrangente em três etapas - tradicional-rural sem mudança; transição; industrial-urbana estável. Nesse modelo se articula um quadro amplo de características listadas de um lado, do que seria a sociedade tradicional, do outro lado, a sociedade industrial para itens definidos como setores (tecnologia, economia, propriedade, organização social, tipos de status, framília, etc.).
         Vemos assim que toda a questão torna a ser reduzida a uma unidade identificável na oposição da sociedade moderna-ocidental como "tradicional". Por outro lado, se o modelo tem várias enunciações para designar tradicional (folk, rural, feudal) conforme os autores, quanto à sociedade industrial-urbana a variação é apenas em considerá-la "liberal" ou "de massas". Na etapa de transição se colocam os fatores de conflito - ideológicos, luta de classes, etc. Subsiste a questão de se os países subdesenvolvidos podem ser arrolados apenas como casos desse período.
        É somente quando se trata da sociologia mais atual - Marsal publicando na transição aos anos oitenta - que se coloca a questão da sociologia do terceiro mundo, com destaque para a americano-latina. Aqui algum item de interesse existe somente quando se renuncia à premissa de que o pensamento sociológico deverá reproduzir as fases de sua consolidação na Europa, do pré-sociológico à filosofia social e à sociologia científica. Mas assim isso é algo que se reconduz aos parâmetros da crítica sociológica já consolidada no centro: ora à noção de sociologia internacional, pela exigência da sociologia nacional; ora como crítica da ciência ocidental.
          Mas já quando se tratava dessa crítica sociológica, colocando-se após o trecho da modernização como algo ilustrativo do panorama internacional - europeu e norte-americano - desde os sixties, esses eram os dois itens importantes. Torna-se claro que nessa abordagem, a crítica no terceiro mundo é na verdade uma assimilação do que já estava ocorrendo no Centro, por outro lado, para Marsal "construir modelos alternativos aos que se haviam  seguido antes" - isto é, na Europa e nos Eua - "não é fácil e requer um tipo de recursos de que carecem esses países periféricos".
        Nquele trecho anterior, Marsal trata a questão nacional em sociologia como algo trivial - para ele toda sociologia é de certo modo nacional, porque as pesquisas sempre tem uma base empírica, logo local ou porque é produzida localmente, não se esclarece; por outro lado, por que segundo ele, ciência é por definição uma linguagem conceitual, portanto internacional, válido universalmente.
          Quanto à crítica epistêmica, ele concorda que há um ingrediente parcial na produção do saber, se ocidental, de uma sociedade industrial-capitalista, etc.. Não fornece a princípio uma solução, mas retrata a condição atual da disciplina, entre vertentes contrárias que disputam para ser "o intérprete autorizado da experiência contemporânea de cada país". Esses litigantes seriam as ciências sociais com base empírica - ciência em sentido forte; e o que chamou as antigas ciências humanas, ensaísticas e literárias que então seriam críticas da cientificidade como do ocidente e suas produções, etc.  A própria sociologia como um todo estaria numa  "situação ambígua" entre  "as duas culturas, a científica e a literária".
          Afinal ele concede uma perspectiva da sociologia como tendo seu futuro assegurado apenas como sociologia crítica - o que permitiria superar o abismo entre o seu uso institucional, as associações nacionais e internacionais e as orientações críticas em ciências sociais.
          A essa interpretação seria oportuno unir os questionamentos de René Lorau e Georges Lapassade a propósito de "quem compra" a sociologia - isto é, basicamente a pesquisa empírica do sociólogo, para descobrir que se são sempre coletividades, não são nunca as minoritárias como os porto-riquenhos ou os favelados como diríamos hoje, e sim apenas as instituições governamentais, de planejamento empresarial, etc. E unir ainda a colocação de Schelsky pelo que nenhum dado tem uma utilidade fora de uma moldura teórica abrangente já consolidada.
           Como assinalei, esses estudos não atingem o que seria o mais recente desdobramento da  "teoria" em sentido amplo, ou como na terminologia "pós-moderna", dos "estudos" que se relacionam à área de humanities - feministas, étnicos, culturais, etc.
             A palavra "cultura", que captamos como o marco do abandono da terminologia sócio-evolucionista, ainda que não de fato do que ela havia já consolidado, seria agora um lugar em que inscreveríamos "linguagem" naquela acepção que o estruturalismo ao menos introduziu no sentido de algo relativo ao requisito de uma teoria do inconsciente.
          Nessa abrangência poderíamos perguntar sobre se há sobrevivência da sociologia - pois, de fato, incosnciente não é nem pode ser "coletivo". Ora, a questão é que, justamente, os "estudos" concedem novo relevo à sociologia empírica, quase como se pudéssemos afirmar que inversamente a implicar a abstração dos dados sociais, eles dependem desses dados porque não se trata de um saber a construir a propósito do que não mais se pressupõe uma identidade - factual ou conceitual, uma modelização. E sim uma alteridade que não se captura num estereótipo identitário. A terminologia pós-estruturalista da "diferença" está relativizada pelo conceito mais abrangente de "heterogeneidade" como de uma diferença que não se mantém ela mesma idêntica a si mesma. Não há uma realidada dada como objeto possível dos "estudos", mas a variação de sua apreensão e de suas efetividades conformes à apreensão.
         O inconsciente - como em Derrida - não é impermeável ao visível, mas está numa relação recíproca com o seu limite de visibilidade de forma tal que esse limite pode ser afrontado pelo lado empírico. Se o que se coloca como inconsciente é a relação variável entre uma alteridade que se põe pelo fato da sua posição ser a do signo em relação a que se põe a sua enunciação, aquilo com que a prática se defronta é o limite do que o signo inscreve.
       É certo que entre Derrida e Paul de Mann a desconstrução se defronta com a alternativa exemplificável pelo desacordo a propósito da interpretação de uma das memórias de Rousseau - ele confessa seu delito do roubo de uma fita: ora, ele primeiro se conscientiza de que roubou, e depois se arrepende, como na versão de Paul de Mann; ou ele já pensa que houve um roubo porque esse ato é o objeto do seu arrependimento, como afirma Derrida? É preciso explicar o vínculo de um sujeito puro e cognoscente, a algo outro chamado sociedade, sendo no entanto o que se faz a presentificação do vínculo pelo laço da moralidade? Ou, como em Derrida, a materialidade, essa expressão problemática mas que ele afinal aceita, do signo, impede que "algo outro" seja mais que uma contradição, pois a alteridade é o que institui esses efeitos de sua enunciação e de sua recepção, de modo que por mais que uma moldura teórica (um desejo) aprisione todo contexto da descoberta (o visível), em algum ponto a ruptura se torna incontornável?
         Por exemplo, saber que  entre o início da década de setenta e o início da década de oitenta, isto é, em plena tecnocracia militar, a população favelada de São Paulo salotou de 39.000  para 414. 572, interfere manifestamente com o discurso midiático neoliberal que desde os inícios do terceiro milênio vem apoiando o novo genocídio programado na América Latina, desta vez contra a população carente, discurso conforme o qual as favelas muito mais inchadas do que na década de oitenta, são apenas redutos dos inaptos que servem ao banditismo das drogas, o qual se tornou o pivô das intervenções armadas.
           As informações sociológicas a propósito da favela neoliberal, cujas proporções não são comensuráveis com qualquer coisa já vista antes, seriam o que qualquer departamento universitário consequente precisaria promover. Não são de conhecimento do público, que das favelas só tem a visão por cima, dos noticiários de jornais que as mostram como regiões cercadas, mantidas sob o controle das armas estaduais e federais, produzindo assim a única mensagem de tranquilidade que interessa à classe média. Obter a visibilidade da situação real dos favelados força a ver que essa é uma realidade decorrente das políticas de concentração de renda - o que historicamente expressam os interesses do capitalismo internacional, estruturalmente formativos das sociedades concentradas periférias.
         Não é como uma informação meramente objetiva que esse saber desafia o "discurso", mas como uma prática interessada da produção dessa informação que expressa o que o discurso não pode dar conta: um público local que nem é o estereótipo dessa classe média, nem o objeto da sua dominação, uma realidade nacional que não é meramente o produzido no/por um "centro". Assim também quanto ao idh (índice de desenvolvimento humano), que os jornais apregoam estar superando o de países do sudeste asiático, quando se sabe que não há um idh único tratando-se do Brasil, mas pelo menos dois, um aproximável ao nível de vida de um país europeu do porte da Bélgica, outro da maioria, que não supera o da Índia.
         Creio que a superação do desenvolvimentismo pelo limite ecológico está na atualidade também forçando a revisão do modo como podemos lidar com a realidade dos países "periféricos" que não podem mais ser supostos transicionais a algo que então sabemos não ser um processo universalizável como a obtenção do nível de vida dos países centrais, cujas bases materiais, por outro lado, não são obteníveis senão pelo desnivelamento internacional que gera as condições distorcidas na "periferia" ou "terceiro mundo".
         Abstrair da história do capitalismo nórdico-protestante o fato de que ele se constituiu industrialmente de modo inextricavelmente unido ao processo de transferência dos domínios coloniais do proto-capitalismo latino-católico, de modo que historicamente não há potência industrial que não seja imperialista, em vez de apenas ter havido uma etapa posterior com essa qualificação, só foi possível enquanto a modernização foi pensável nos termos do desenvolvimento generalizável.
           Ora, paralelamente, a mudança social em sociologia tornou-se algo mais que apenas a somação dos itens relevantes de mudanças setorizadas, para se tornar a concepção mesma do social como algo que está sempre em devir.


          Temos uma afirmação da sociedade em devir,  na concepção de Ralf Darhendorf. Escrevendo sobre “sociologia e sociedade industrial” em Sociedade e Liberdade, ele  traçou uma história sumária da sociologia mostrando que sua emergência dependeu da transformação, no século XVIII, do tema da desigualdade dos homens. De uma contingência da natureza, possivelmente interpretada como um mandato de Deus, a desigualdade se tornava agora uma questão. Mas ao passo que a revolução industrial se desenvolvia, a questão foi se aproximando cada vez mais de uma inquietação e de uma certeza, a de que a unidade funcional da sociedade estava comprometida, a de que a realidade social não expressava nenhuma forma de integração natural e sim esquemas comprometedores da liberdade e da justiça entre os grupos humanos que a integravam.
         Ora, a sociologia como ciência, que se afirma depois das contribuições de Marx Weber conforme Dahrendorf, perdeu o “primitivo interesse”, desterrando a valoração crítica, para ficar apenas com a intenção de captar a realidade social e a postura que o ser humano tem aí pelo viés de sua cientificidade. Ou seja, pelo único critério de conhecimento dado como válido no século XX, a “ciência da experimentação”. O resultado desse transporte à promissed land da validez foi o conceito de sociedade industrial.
         Ao longo do século XIX a natureza da sociedade contemporânea permaneceu uma questão polêmica. O veto à especulação “valorista” rumo a um ideal depurado da science, firmemente ancorado na tradição das ciências experimentais, que se configurou na Sociedade Alemã de Sociologia desde a imposição das teses de Weber, consolidou a terminologia da sociedade industrial como um termo asséptico para assinalar o consenso sociológico acerca da natureza da sociedade contemporânea.
       As notas do conceito sociológico de sociedade industrial que enfeixa esse consenso, assim como enumeradas por Dahrendorf, refletem curiosamente o senso comum das classes médias acerca do mundo em que vivem, ou como ele deveria “normalmente” ser: inexistem os extremos para efeitos estatísticos de impacto, e mesmo, fundamentalmente, só existe uma categoria comum de status, a de cidadão. Não há, pois, “diferenças de princípio” entre as pessoas e, quanto ao critério de rendas, a imensa maioria desfruta das posições médias. Convertida em uma sociedade de massas, na contemporaneidade a sociedade industrial apagou as prerrogativas individuais, pois ninguém se distingue de seus semelhantes, todos integram o mesmo ambiente cultural e assimilam as mesmas palavras de ordem que especificam modas, objetivos e costumes - como hoje afirmaríamos de uma sociedade midiatizada.
         O intelectual que conceitua a sociedade não esconde um certo desdém por esse objeto de massas, pois se considera melhor, alguém diferente porque conhece o esquema de nivelamento ao qual os outros apenas se integram passivamente. Mas os dois outros traços notados por Dahrendorf não deixam de anular esse resquício de auto-apreensão consciente. Trata-se de que essa sociedade é também de consumação, onde se permanece uma escala, ela é a que mede o que cada um consegue obter partindo de uma falsamente pressuposta igualdade de oportunidades. Quanto ao poder, a sociedade massificada não o conhece como instância de dominação do homem pelo homem, pois todos os esquemas de autoridade – os do trabalho como os da política – foram eficazmente substituídos pela "racionalização" das estruturas, da produção como da administração da coisa pública.
         Ser ciência é proceder de um modo “avalorista”, conforme a perspectiva que Dahrendorf apresenta como tendo sido a das ciências experimentais da época de consolidação da sociologia. Tudo o que a esta tem a fazer, traçando o perfil da sociedade real do presente, é lidar com o mundo objetivamente dado. Mas não se pode evitar a sensação de que o objeto descrito está isento de críticas, de que assim é para o melhor, de que aquilo que se enuncia só pode ser de um teor racional, lógico e exato, isto é, só pode estar refletindo a objetividade. A suspeita quanto à serventia ideológica dessa neutralidade, conforme Dahrendorf, não está afastada nem dentro dos círculos que a cultivam, mas ali ela é refletida como uma condição do exercício da racionalidade.
         Trata-se, no limite, de enunciar a tendência dominante, sem se deixar desviar pelo desejo ou a projeção egóica de como as coisas deveriam ser. Tendemos, pois, para a nivelação, para a consumação, para a harmonização. Supérfluo acentuar que esses sociólogos não apenas tranqüilizam e corroboram as expectativas da classe média, mas eles mesmos são classe média. Dahrendorf questiona veementemente esse “mito” da harmonia, “mito” da sociedade industrial como um conceito universal, como se não houvessem irredutibilidades de fato entre a sociedade americana e russa, inglesa e alemã - dos países centrais e periféricos, também se poderia acrescentar.
         É tempo de repensar a sociologia, a meu ver, mostrando que desde o seu surgimento naquele indubitavelmente polêmico e crítico ambiente do século XIX, ela não se resumiu nessa ideologia – nem sequer – disfarçada. O que se comprova pela própria contribuição de Darhrendorf, pensador que se mantém crítico e bastante bem aparelhado conceitualmente para compreender o que permanece extremamente valioso na sociologia: a constatação da necessidade de superar a sua autocompreensão como ciência do sistema de inserção das partes no conjunto social, para desenvolver uma concepção de sociedade como algo essencialmente fluente, sempre em mudança, onde a estagnação e a paralização são agora o que tem que ser explicado, como fatores acidentais.
          Essa concepção não é outra coisa que afirmar que as sociedades são históricas, portanto não podem ser reduzidas a sistemas generalizantes. Creio que um modo de mostrar isso é notar, por exemplo, que o matricentrismo das favelas do ambiente urbano geradas pela pobreza definida como variável do capitalismo internacional não é historicamente explicável do mesmo modo que o matriarcado de algumas sociedades não-moderno-ocidentais, pois nas favelas o "poder da mamãe" ocorre porque os filhos não conseguem independência financeira, tornam-se dependentes dos pais mesmo quando constituem suas famílias, não porque eles se agregam "naturalmente" num esquema de trabalho tribal.
          Trata-se portanto de algo relativo às taxas de desocupação crônica que o capitalismo reserva nos termos da mão de obra que barateia a oferta de empregos. Assim também, o pleno emprego como um dos objetivos da sociedade do bem estar seria algo dedutível como saneador da pobreza, em vez de um fator depressivo do capital como apregoam os neoliberais. Se a pobreza como eles mesmos apontam, é uma "cultura", não uma situação, por outro lado pode-se demonstrar que na ausência daqueles dispositivos classicamente atribuíveis a sociedades fascitas-midiatizadas, a classe trabalhadora não vota no partido conservador, e sim no trabalhista que nesse caso não amalgama os valores conservadores à redução do humano ao papel de trabalhador, mas geralmente defende e avança políticas de interesse social.
         Essa ênfase na sociologia informativa da realidade social local não esgota, certamente, os rumos da sociologia atual, nem o exame panorâmico que efetivamos a propósito da história da sociologia reduz a variada gama de interesses a que se relaciona. O intuito desse escrito, inversamente, é mostrar o quanto a pesquisa sociológica está sendo necessária no cenário atual onde a manipulação da informação resume a operação planetária da assimetria internacional do capital.

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